sábado, 25 de maio de 2013

As lições e o estilo literário dos relatórios do prefeito Graciliano

tratamos neste espaço de vários livros de Graciliano, inclusive tentamos recriar numa crônica a bronca que enquanto prefeito dera em seu pai. Chegou a hora de tratar da produção que chamou a atenção para o homem natural de Quebrangulo, que estava bem distante de querer os holofotes para si.

A situação de como Graciliano foi parar na prefeitura é assim descrita por Moraes:

“Uma competente articulação política levaria Graciliano a concorrer à prefeitura de Palmeira dos Índios nas eleições de 1927. A sucessão municipal estava em pauta desde que o prefeito Lauro de Almeida Lima fora assassinado, em fevereiro de 1926, após desentendimento com o fiscal de tributos João Ferreira de Gusmão e Melo. Este em seguida seria fuzilado pelo delegado de polícia local. O banho de sangue traumatizara a cidade. O vice-prefeito Manuel Sampaio Luz assumira para cumprir o terço restante do mandato” (52).


Aos 36 anos, Graciliano Ramos era prefeito de Palmeira dos Índios, mesmo sem querer e sem se preocupar em fazer política como ocorria tradicionalmente no país, quando escreveu o relatório referente ao primeiro ano de mandato, enviado ao governador como uma espécie de prestação de contas. No ano seguinte, a mesma coisa, outro relato ao governador Alvaro Paes. Foi graças a algo que os políticos de hoje seguem não fazendo, que o estilo literário de Graciliano passou a gerar interesse aos editores brasileiros.

Tive acesso a estes relatórios através da 3ª edição de Viventes das Alagoas, obra publicada postumamente recheada de crônicas do autor, que tentarei comentar posteriormente. Ao final, constam os dois relatórios, recheados com o cuidado com os números e de sarcasmo para contar como foi levado cada ano de gestão. Uma aula para os políticos de hoje, numa época que Lei de Responsabilidade Fiscal estava longe de ser obrigação, ainda mais prestar esclarecimentos a cada ano no Executivo - que Graciliano abandonaria ainda no 3º ano para trabalhar na Imprensa Oficial, em Maceió.

Apesar de poucas páginas, ouso apontar os parágrafos que me chamaram a atenção ao longo de uma leitura, que gerou algumas risadas impensáveis para um documento oficial.

PRIMEIRO RELATÓRIO
As dificuldades encontradas numa prefeitura do interior de um Estado tão pobre quanto Alagoas - algo não tão diferente dos dias atuais - foi demonstrada já no início. Ainda que Graciliano Ramos vá demonstrar os gastos realizados com obras essenciais, ele opta por justificar o porquê de não ter feito mais coisas:

“Não foram muitos [trabalhos realizados], que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o Município se achava, muito me custaram” (183).

A justificativa para que a cidade não estivesse numa situação melhor e, também, que ele pudesse desenvolver de uma maneira ainda melhor a sua gestão aparece com argumentos que bem poderiam seguir ao longo destas mais de 8 décadas transcorridas e ainda para várias cidades do Brasil:

“Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores e quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia advogavam” (183).

Neste primeiro relatório ele vai reclamar ainda que "os devedores são cabeçudos", "pagam ao Município se querem, quando querem e como querem", fazendo com que fossem gastos recursos para realizar as cobranças. 

Lembra-se aqui que, segundo Moraes [na biografia O Velho Graça], Graciliano se dedicou tanto às contas e às obras da prefeitura que viu o negócio da família falir, por falta de tempo para tomar conta pessoalmente. Já na prefeitura ocorria o inverso. Ainda que as receitas tenham superados as despesas, ele, humilde e sarcasticamente, deixa aberta a possibilidade de deixar o cargo para outrem ao mesmo tempo que critica o nepotismo existente - algo que também só vem a ser proibido muito tempo depois: 

“Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados” (190).

Por fim, destaco o fato de não existir nenhuma legislação coerente com o novo século, afinal os calhamaços de leis eram da época do Império, que dificilmente era encontrada e serviria para os novos tempos:

“Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem” (191).

Com 11 contos em caixa e "procurando sempre os caminhos mais curtos", com as curvas nas estradas só quando não era possível ter retas (191), ele encaminhou o relatório no dia 08 de janeiro de 1930.


SEGUNDO RELATÓRIO
Provavelmente, a surpresa causada pelo primeiro relatório não tenha sido a mesma quando Alvaro Paes recebeu o segundo. Afinal, se hoje em dia é difícil imaginar um prefeito realizar tal fato, imagina naquela época, e com tanto detalhamento e certo preciosismo crítico.

Enviado em janeiro de 1930, há repetição de reclamações, um bom relato sobre a sociedade do interior do Nordeste do período e, principalmente, um importante discurso sobre como as pessoas pobres eram mais prejudicadas sempre. Isso aparecendo desde o início, quando ele fala sobre o aumento da receita de 68 para quase 97 contos:

“E não empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extinguiu favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores” (199).

Aqui, agora com ainda mais conhecimento da prática, já que o prefeito acompanhava as obras de perto, ele volta a criticar como os seus antecessores desperdiçavam dinheiro público, ao citar as estradas que existiam até antes da chegada dele, que eram "uma teia de aranha de veredas muito pitorescas, que se torcem em curvas caprichosas, sobem montes e descem vales de maneira incrível" (202).

Assim:

“Dos administradores que me precederam uns dedicaram-se a obras urbanas; outros, inimigos de inovações, não se dedicaram a nada.
“Nenhum, creio eu, chegou a trabalhar nos subúrbios.
“Encontrei em decadência regiões outrora prósperas; terras aráveis entregues a animais, que nelas vivam quase em estado selvagem. A população minguada, ou emigrava para o Sul do País ou se fixava nos municípios vizinhos, nos povoados que nasciam perto das fronteiras e que eram para nós umas sanguessugas. Vegetavam em lastimável abandono alguns agregados humanos.
“E o palmeirense afirmava, convicto, que isto era a princesa do sertão. Uma princesa, vá lá, mas princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muito escavada” (203). 

Mesmo com as obras, os munícipes estranham tantas melhorias, mal acostumados com alguém a fazer bens públicos, no entendimento de que "se aquilo [rodovia de Sant'Ana] não era péssimo, com certeza sairia caro, não poderia ser executado pelo município" (204). 

Segue ele dizendo que após as obras, a conversa era outra, em que justificavam que aquilo só tinha sido possível graças ao aumento dos impostos ou que elas eram pagas pelos Estado. O sarcasmo volta a aparecer quando ele admite que se convencerá de que não foi ele que as realizou, dando uma aula logo em seguida: 

“Já estou convencido. Não fui eu, primeiramente porque o dinheiro despendido era do povo, em segundo lugar porque se tornaram fácil a minha tarefa uns pobres homens que se esfalfam para não perder salários miseráveis” (204).

Por fim, trago o tópico "POBRE POVO SOFREDOR", dedicado a traçar as características das pessoas que poderiam pagar impostos, a elite da sua terra, que serão tipificadas nas obras que virão a seguir:

“É uma interessante classe de contribuintes, módica em número, mas bastante forte. Pertencem a ela negociantes, proprietários, industriais, agiotas que esfolam o próximo com juros de judeu.

“Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão.

“Como ninguém ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros” (206).

Se em 30 de abril, Graciliano Ramos sairia da prefeitura de Palmeira dos Índios pensando que teria mais tranquilidade na vida e, especialmente, financeiramente para a família, estava errado. Até o final da ida, nada de tranquilidade, sendo preso e passando por várias dificuldades para sobreviver fosse em Alagoas ou no Rio de Janeiro.

Porém, nasceria grandes obras de alguém que já dava pistas de ser um grande retratista da vida social do interior do país, compondo a partir da década de 1930 o conjunto de artistas regionalistas do modernismo, ainda que mais velho que seus contemporâneos.


REFERÊNCIAS
MORAES, Dênis de. O velho Graça: Uma Biografia de Graciliano Ramos. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

RAMOS, Graciliano. 2º Relatório ao Governo Alvaro Paes – 1930. In: ______. Viventes das Alagoas. 3.ed. Prefácio de Tristão de Athayde. (Obra póstuma). São Paulo: Martins, 1970. p. 197-207.

RAMOS, Graciliano. Relatório ao Governo do Estado de Alagoas – 1929. In: ______. Viventes das Alagoas. 3.ed. Prefácio de Tristão de Athayde. (Obra póstuma). São Paulo: Martins, 1970. p. 181-196.

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