domingo, 15 de janeiro de 2012

15 de janeiro: "A noite que nunca acabou" e o dia superado


Para quem não é do Rio Grande do Sul, é bem estranho. Todo o país só fala de futebol daqui para tratar de Grêmio e Internacional, os dois clubes da capital e com títulos nacionais e internacionais importantes. Aqui ou acolá, dependendo do momento histórico, até se falou de Juventude e Caxias - ambos em crise, nas séries D e C, respectivamente. Mas basta conhecer alguém de Pelotas para saber que se futebol é paixão, e se você é apaixonado por futebol, a cidade da região sul é o local a se visitar e conhecer.

Tenho um amigo de Pelotas e sei muito bem disso. Aliás, como ele mesmo nos diz, primeiro é Xavante -  depois é natural de Pelotas, gaúcho e, por fim, brasileiro. Xavante (índios que ocuparam a região sul do Estado e símbolo do clube) é o torcedor do Grêmio Esportivo Brasil, o rubro-negro Brasil de Pelotas, um sinônimo para paixão incalculável e irracional. Até mesmo os mais racionais, conscientes e críticos seres humanos e pesquisadores deixam a paixão dominar suas ações.

Pude conhecer nestes 10 meses em território gaúcho não só um típico xavante, como também verificar esta tresloucada paixão, ir ao Estádio Bento Freitas e perceber o quanto um dia na história desse clube ainda deixa dores vindas de suas cicatrizes. 

#15dejaneiroODiaQueSuperamos
Lembrava ter visto em telejornais da época. No dia 15 de janeiro de 2009, o ônibus que trazia a delegação do Brasil de Pelotas tombou numa curva e caiu num barranco de cerca de 30 metros. As matérias destacavam a presença do goleiro Danrlei, ex-Grêmio, no elenco rubro-negro.

Para tristeza de toda a torcida, três pessoas morreram: o zagueiro Régis, o treinador de goleiros Giovani e o atacante uruguaio Cláudio Millar. Millar é o maior ídolo da história xavante, com mais de 100 gols com a camisa rubronegra e voltara a marcar gol de pênalti após dois anos sem sequer tentar cobrar. O time venceu o Santa Cruz, em Santa Cruz do Sul, por 2 a 1 e voltava para Pelotas num ano em que o elenco era muito bom, base do time que quase subiu à Série B do Brasileiro no ano anterior.

A maioria dos jogadores saiu com graves lesões e com problemas psicológicos. Sem quaisquer condições para atuar na semana seguinte, pela primeira rodada do Gauchão. Alguns, como Edu, que viera do Grêmio como uma grande revelação, mas que dava azar com sucessivas lesões, acabaram encerrando a carreira por conta de problemas físicos que impossibilitariam atividades profissionais.

A noite que nunca acabou
Peguei emprestado, ainda no primeiro semestre do ano, o livro A noite que nunca acabou (Livraria Mundial, 2009), escrito pelo repórter fotográfico Nauro Júnior e pelo jornalista Eduardo Cecconi, ambos do Grupo RBS - o maior conglomerado regional de comunicação da América Latina. A emoção do relato é um claro exemplo de como deve ser o jornalismo, especialmente o esportivo: refletir o momento em suas mais diversas variáveis, desde que respeitando os envolvidos, mas com sentimento.

Impressionou-me no livro o relato sobre as pessoas que perceberam que estavam razoavelmente bem e que procuraram a todo o custo ajudar os seus companheiros, seja aquecendo, conversando e, até mesmo, buscando ajuda o mais rápido possível. A minha surpresa ficou por conta de Danrlei, que pela sua estrela e histórico - principalmente pelas brigas - não imaginava que pudesse se preocupar tanto com as pessoas, sinceramente...

Assim Nauro Júnior e Cecconi contaram:

"Vasculhando a mata à procura de feridos dispersos pelas escancaradas janelas nas sucessivas capotagens, agitando camisetas à beira da estrada, correndo no encostamento em busca de carona, estancando sangramentos com toalhas – também utilizadas para cobrir quem sentia frio, abraçando os amigos para aquecê-los, ou os confortando com mochilas sob suas cabeças, conversando com os desnorteados, tranquilizando os desesperados, velando os mortos, auxiliando a primeira equipe de enfermagem, assim todos ao mesmo tempo ligavam-se à cena, mas fugiam dela.
“Assumir o comando do socorro até a chegada da ajuda profissional possibilitara a todos não racionalizar a tragédia. Protagonizaram uma história sobre a qual ainda não haviam racionalizado. Agiam por instinto” (115).
[...]
“Cléber Gaúcho, Luciano, Danrlei, Carlão, Oliveira, Eliandro, Edenilso, Vinícius, Kelson, eram substituídos pelos médicos e enfermeiros, das ambulâncias que não paravam de chegar” (116).

Insensibilidade da RBS
Após o acidente, a diretoria do clube e a Federação Gaúcha de Futebol tentaram estabelecer um acordo para não prejudicar um time que vivera tal tragédia. A ideia original, que eu até lembrava, era de que o Brasil disputaria o Gauchão, mas não poderia ser rebaixado. Lendo o livro, a proposta não seria aprovada por todos os clubes, única forma de modificar o regulamento aprovado.

Além disso, havia promessas da dupla Gre-Nal para ajudar a formação de um novo elenco Xavante, com a cessão de jogadores da base que não seriam aproveitados. Algo que, pelo que me disseram, também não ocorreu.

De ajuda real, aparentemente só alguns apoios financeiros aqui ou acolá, já que todo o dinheiro reservado e ganho com patrocínios para a formação do time foi gasto com atendimento médico e indenizações a atletas e/ou familiares. O banco estatal patrocinaria o clube durante o Gauchão, a Vivo fechou no dia da reestreia e o novo treinador, Claudio Duarte, aceitara trabalhar sem receber salários.

Mas, fiz questão de destacar que os autores do livro eram (não sei se ainda são) do Grupo RBS porque o mesmo forçou uma situação altamente desnecessária para um clube que passara por um trauma deste nível. Comentei isto num texto da Coluna Além das Quatro Linhas, escrito com outros companheiros, em que analisamos a decadência do futebol do interior gaúcho: a RBS TV, após ter adiantado o pagamento para todos os clubes da primeira divisão daquele ano, pressionou para que as datas fossem cumpridas. 

Nauro Júnior e Cecconi destacam neste trecho do livro o que me fez ter tal interpretação:

"No entanto, o campeonato não pararia. Não podia parar. Com seus direitos adquiridos por uma emissora de televisão, o Gauchão obrigava-se ao cumprimento prévio. O trem do campeonato estadual partiria pontualmente, com hora precisa de chegada.
“A urgência pelo respeito ao contrato que proporciona aproximadamente trezentos e cinquenta mil reais para cada clube pela cessão dos direitos de televisionamento afligia de tal maneira Novelletto [ainda hoje presidente da FGF], que reiterava a iminência de ter o fígado devorado se a tabela não fosse religiosamente cumprida.
“O dinheiro já batera no fundo das contas bancárias da maioria. E mesmo antes de aromatizar os cofres com o perfume das cédulas foi utilizado na quitação de dívidas, na contratação de profissionais, e no pagamento de salários.
“Estavam todos comprometidos com as determinações da emissora, todos submetidos às suas datas, conforme a grade de programação disponível. Ou o Brasil ocuparia um dos vagões desde o início, ou correria para atacá-lo com o comboio em andamento. Certo era que os dezesseis passageiros do campeonato desembarcariam na última estação simultaneamente” (193).

O Brasil de Pelotas até poderia estrear mais tarde no primeiro turno, porém, teria que fazer uma (nova) pré-temporada bem menor que a dos adversários, com estreia no dia 03 de fevereiro, e a incrível façanha de um jogo a cada 48 horas, ou menos. Resumindo: a prova cabal de que o futebol, para quem manda, é muito mais negócio, senão só isto!

Campanha
O livro narra as dificuldades vividas para a formação do time e, consequentemente, dos jogos e confrontos realizados, especialmente no primeiro turno. Para as primeiras rodadas, tentaram juntar a maior quantidade de partidas para o Estádio Bento Freitas, mas também a sequência fora de casa seria ainda mais cansativa.

No primeiro jogo, empate de três a três contra o Santa Cruz, o mesmo que semanas antes haviam vencido com gol do ídolo Millar. Numa partida com virada xavante, mas empate depois, já que vários jogadores cansaram no segundo tempo por conta da falta de preparação adequada, o destaque ficou para o novo capitão do clube. O zagueiro Alex Martins, muito amigo de Régis, comemorou o terceiro gol fazendo da mesma forma que Millar: jogando a flecha xavante para o ar:


Entre derrotas, empates, e a briga generalizada contra o Ulbra/Canoas, que tiraria o goleiro Danrlei do resto do campeonato, o time só teve uma vitória. E ela veio na última partida, já rebaixado. O Brasil de Pelotas, com gol de Kelson, pôde dar uma alegria aos seus torcedores, numa vitória que valeu como a superação desse histórico time e de sua espetacular torcida. O primeiro campeão gaúcho e que um dia (em 1986) eliminou o Flamengo de Zico nas quartas-de-final de um Campeonato Brasileiro...

“O velho alambrado enferrujado foi escalado pela última vez, por jovens de todas as raças, que batiam no peito e beijavam o distintivo do Brasil nas camisas. Kelson, ileso após dois acidentes, artilheiro da equipe e autor do gol da única vitória xavante, foi o último a descer aos vestiários. Nos microfones das rádios, resumiu o que sentia:
'Já joguei em muitos clubes, mas nunca senti esta energia que vem das arquibancadas como aqui. Quero ficar, espero que eu seja um jogador que faça história neste clube'.
“Simultaneamente, dez meninos arrancavam tufos de grama, como objetos para futuras recordações daquela noite. Outro grupo recolhia uma bandeira em formato de camisa gigante.
“Diogo encerrou o comentário na tevê reafirmando a surrealidade dos elementos dramáticos do confronto, dizendo ter visto um acontecimento 'digno de um documentário'.
[…]
“A noite de dois de abril começou ao final da noite de quinze de janeiro. Foram setenta e sete dias e noites de insônia, revisita às imagens da dor, de choro pelas mortes de Claudio Milar, Régis e Giovani, de frustração pela campanha do rebaixamento com um elenco improvisado e um calendário rigoroso.
“Uma noite sem fim que impediu Milar de concretizar o sonho de ser presidente do Brasil. Interrompeu a carreira do zagueiro Régis, resistente às propostas de outros clubes para não deixar o Bento Freitas. Retirou de Giovani a possibilidade de prosseguir com seus projetos acadêmicos e sociais.
“Nenhum xavante nunca vai esquecer o que aconteceu. Mesmo que o tempo cicatrize as feridas emocionais, e as memórias tristes cedam espaço às lembranças eternas dos gols e do aguerrimento” (269).

SITUAÇÃO ATUAL
O Brasil de Pelotas disputará em 2012 pela terceira vez consecutiva a Segunda Divisão do Campeonato Gaúcho, ou Série Intermediária, que começa em março. Ano passado, graças a um erro da diretoria, o STJD tirou seis pontos do clube, que foi rebaixado para a Série D por conta disso - após empatar em pontos com Caxias e Santo André, mas ter melhor saldo de gols que o time paulista.

Independentemente de qualquer coisa, parafraseando o amigo xavante citado no início de texto, e com quem pude conhecer um pouco da história de sofrimento e paixão - tão característicos ao futebol - do Grêmio Esportivo Brasil: "A glória não consiste em jamais cair, mas sim em erguer-se toda vez que for necessário". E a torcida Xavante sempre mostra que, se depender dela, isso não tardará a acontecer.

REFERÊNCIA

JÚNIOR, Nauro; CECCONI. A noite que não acabou. Pelotas, RS: Editora Livraria Mundial, 2009.

8 comentários:

  1. Parabéns pela análise Anderson. Muito lúcida. Sabia que não me arrependeria de te colocar a par das coisas do meu time.

    Poderíamos culpar uma infinidade de pessoas ou instituições por tudo que deu errado a partir daquele acidente. Mas, infelizmente, sabemos que erros e injustiças existem por toda parte. Não só no futebol.

    A história do Xavante é feita de superação, devoção, trabalho e, sobretudo, do amor de sua torcida. O Grêmio Esportivo Brasil é grande e superou essa tragédia. Não é apenas um clube de futebol. Faz parte das nossas vidas para além de conquistas ou derrotas.

    Cada vez me convenço mais da essência do torcedor Xavante. Queremos conquistar mais do que títulos. Cada gol é uma vitória. Cada vitória, uma conquista. E, cada conquista, uma glória. Que venha a temporada 2012. Rubro-negro vem aí e o bicho vai pegar!!!

    Forte abraço.

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  2. Parabens pela materia. Eu, como Xavante nato, cheguei ao teu blog procurando noticias de nosso clube em caminhos obscuros que a internet trata de nos apresentar.

    Eternos guerreiros!

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  3. Obrigado Eduardo e Felipe pelos elogios. Agradeço também a todos os xavantes que estão lendo este texto, com recepção maior que o normal para este modesto blog.

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  4. Obrigada pelo lindo texto sobre o meu XAVANTE! Sou com muito orgulho de família 100% Xavante e com certeza sempre é emocionante ler coisas boas e verdadeiras sobre nossa maior paixão.
    Abraço Xavante,
    Tania Blaas

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  5. Obrigada, Anderson, por falar do meu time, da minha paixão, é sempre bom ouvir ou ler palavras de alguém que não é daqui,principalmente quando se referem ao meu XAVANTE querido, e dói lembrar daquele dia, dói saber que com a torcida maravilhosa que tem, meu Brasil está onde está, mas vamos voltar para o lugar de onde nunca deveríamos ter sáido, e com certeza vamos levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima.

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  6. Obrigado, Tania e Claudinha. Futebol é paixão e, independentemente qual o time que alguém torça, sempre é de admirar o torcedor apaixonado pelo seu clube.

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  7. Anderson, obrigado pelo carinho com nosso clube.
    Você, em pouco tempo, soube captar a essência deste sentimento. Abração
    Fabrício Cardoso

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  8. Parece que foi ontem e ainda corre um arrepio na alma só de lembrar a maneira como Cláudio Milar, Régis e Geovani partiram. De alento, apenas a lembrança da garra e da dedicação acima da média com que estes guerreiros defenderam o G. E. Brasil até seus instantes derradeiros. Cada vez que lemos textos escritos sobre suas histórias temos mais consciência do quanto significaram para o Rubro Negro da Princesa do Sul. Isto tem um preço muito alto: saudade.

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