quarta-feira, 14 de outubro de 2009

“Que pagas?” – Eugênia Grandet (Honoré de Balzac)

As manifestações culturais de um dado período histórico tendem a refletir o processo sócio-histórico vivenciado e desenvolvido num determinado local de produção artística. O artista, influenciado por várias fontes sociais (família, escola, trabalho,...) – e estas influenciadas por tantas outras -, objetiva na obra características de tal construção subjetiva que, às vezes, nem ele mesmo poderia esperar.

O francês Honoré de Balzac (1799-1850) descendia de aristocratas e criticava a nova classe dominante na França pós-Revolução e perpassava isso na sua vasta produção literária. Ele produzia dezenas de livros por ano, a maioria de qualidade baixa visando às vendas mais populares, para poder manter o dispêndio financeiro de uma vida desregrada.

EUGÊNIA GRANDET
Criado em 1833, Eugênia Grandet apresenta a crítica balzaquiana ao “novo mundo” burguês, num período em que o sonho de “liberdade, igualdade e fraternidade” da Rev. Francesa já havia se transformado numa nova forma de dominação, só que com personagens diferentes. Mesmo que apresentando indícios da saída da importância e grande influência religiosa com a entrada da busca do poder trazido pela posse da propriedade privada.

Guido Oldrine, em estudo sobre as raízes da ontologia marxista lukacsiana, destaca a teoria do reflexo do filósofo húngaro, uma boa explicação para a influência social sobre qualquer produção humana:

[...] na doutrina lukácsiana do ‘reflexo’ pôde ser vista precisamente – por parte de Agnes Heller, quando era fiel discípula de Lukács – a ‘expressão de um fato ontológico: do fato que, sendo a realidade una e contínua, as mesmas categorias fundamentais devem necessariamente comparecer em todas as esferas da realidade – o que não exclui a existência de categorias específicas para cada esfera’ (pp. 12/13).

ENREDO Este livro representa a contradição apresentada entre uma cidade do interior com a capital francesa, a tradição versus a busca incessante individual pelo ter mais. A história trata de alguém do interior que enriqueceu com base na avareza e pretende mostrar, em determinado momento, que é melhor que os “revolucionários” parisienses. O Pai Grandet é o grande referencial como personagem social. É o exemplar do típico (termo lukacsiano) burguês.

Este trecho do livro (pp. 102/103) poderia muito bem resumir o enredo da história e o que pensa Balzac sobre a nova classe dominante:

Os avarentos não creem numa vida futura, o presente é tudo para eles. Essa reflexão lança uma luz horrível sobre a época atual, onde, mais que em qualquer outro tempo, o dinheiro domina as leis, a política e os costumes. Instituições, livros, homens e doutrinas, tudo conspira para minar a crença numa vida futura, sobre a qual se apoia o edifício social há 1800 anos.

A personagem-título do livro é membro de uma família do interior da França, cidade ainda afeita aos costumes e tradições e longe de todo o glamour parisiense. Filha do mais rico e avarento comerciante do local, Eugênia vai se transformando ao longo da obra. De personagem ingênua e acostumada à vida de pobreza imposta pelo pai – um ex-tanoeiro que divide até cubo de açúcar para economizar -, ela envereda num romance que vai construir uma personalidade mais forte, que se consolida ao final quando se torna uma cópia do pai: inteligente e astuta quanto aos interesses e assuntos financeiros.

Duas famílias disputam a herdeira Grandet palmo a palmo em quase toda noites, apesar do patriarca da família já ter se decidido por nenhuma das duas. Porém, nenhum dos personagens esperava pela chegada de alguém vindo de Paris, um local tão diferente. Arrogante e ligado ao luxo, o primo Carlos aparece para acabar com qualquer possibilidade de enriquecimento de ambas e do plano do tio para sua filha.

Carlos Grandet chega para apaixonar todas as mulheres do lar, mesmo que de maneiras diferentes, até a empregada, eternamente agradecida ao patrão, ajuda Eugênia nas mentiras e cuidados excessivos com o primo. Mesmo a mãe, alguém totalmente submetida ao marido, entra num processo de intermediação entre pai e filha que acabará com suas forças vitais.

Senhor Grandet se revolta com toda a situação, logo ele, afeito a controlar tudo (mercado, ações, lavouras, preço do ouro, relações de interesse social,...). Além disso, a vinda do sobrinho traz um problema e um desafio para ele: o seu irmão parisiense, que todos achavam mais rico que ele, enviara uma carta pedindo ajuda ao filho, pois se suicidaria antes de anunciarem sua falência.

Enquanto Eugênia e Carlos se enamoram por pouco tempo, o patriarca da família elabora uma estratégia para passar pelos franceses. Não como vingança ou honra ao nome do irmão, mas para se mostrar mais esperto em negócios que os parisienses. A sala, quase um cofre forte, em que fazia seus cálculos e estratégias de negócio, tinha paredes grossas para que ninguém ouvisse o que ele fazia. Afinal, ele sempre estava à frente de todos, só não esperava que a própria filha o atrapalhasse.

Entretanto, no final de tudo todos ficarão parecidos com o pior personagem da história, aquele cujas atitudes causam asco, mesmo que dentro da lei burguesa. Eugênia refletirá isso quando abrir os olhos para o amor e este abrir sua consciência para os desafios da vida, e seus interesses burgueses por dinheiro ainda acompanhado por um bom sobrenome, mesmo que isso não sirva tanto. “Ideia aliás inscrita por toda parte, até na leis que perguntam ao legislador: ‘Que pagas?’, ao invés de: ‘Que pensas?’” (p. 103).

REFLEXO Conhecido como um excelente historiador de costumes, Balzac constrói um romance com os mínimos detalhes sócio-históricos de sua época. Numa preocupação na discrição até de salas, quartos e jardins, numa narrativa realista a qual não falaremos mais para não dar sinais do final da sua história.

Lúkács (apud Oldrine, p. 13) no capítulo “Arte e sociedade” do livro Ensaios sobre Literatura, explica que apesar desta intrínseca relação com os conteúdos objetivos cotidianos, a produção artística pode alcançar e demonstrar a realidade para além do comum, algo que Honoré de Balzac conseguiu fazer, apesar de determinadas limitações:

‘O reflexo artístico da realidade encontra o seu ponto de partida nas mesmas contradições donde parte qualquer outro reflexo da realidade. Sua especificidade consiste em para resolvê-las busca um caminho diferente daquele do reflexo científico’.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BALZAC, Honoré de. Eugênia Grandet. Tradução: Moacyr Werneck. São Paulo: Abril Cultural, 1981. (Grandes Sucessos).
OLDRINE, Guido. Em busca das raízes da Ontologia (marxista) de Lukács. Trad. Ivo Tonet. s/d.

2 comentários:

  1. Gostaria que me respondesse algo: qual é a diferença entre um avarento que controla ferrenhamente os gastos de sua família e um ditador comunista que controla todos os meios de produção, mídia e educação de seu país?

    Um avarento pensa no presente sem levar em conta o futuro. Um comunista pensa no presente, mas sonha com um futuro hipotético, no qual a sociedade funcionará perfeitamente controlada por ele...

    Analisar uma obra como Eugenia Grandet a partir de um teórico socialista é reduzir toda a sua grandeza a esqueminhas materialistas... É ver em todo canto luta de classes como se apenas isto existisse.

    É o sintoma da educação universitária. A lavagem cerebral marxista. Acaso lhe disseram quantas vítimas o comunismo fez? Muito mais que o nazismo, facismo e todas as guerras modernas juntas. Acaso lhe contaram dos controle absurdo, da proibição de pensar o contrário, sujeita à pena de morte? Ao retrocesso criativo que isso acarreta? Ou acha que esse computador que você utiliza ou o blog no qual escreve seria fruto de um regime que raciona água, luz, comida e determina o que deve ser criado e produzido em seu país?

    Percebe a contradição? Tem que ser um idiota para entregar as possibilidades do seu futuro nas mãos de um comunista - que geralmente goza de todos os privilégios materiais, como o riquíssimo Fidel - em troca de controle absoluto...

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  2. "Anônimo", depende do que vc chama de "comunismo". Não sei se vc chegou a ler algo ou ouviu falar sobre a teoria marxista, de uma revolução através da raiz da sociedade (radical) - ou seja, de toda ela, e não de um país ou outro. Além de ocorrer a partir de uma sociedade com um bom desenvolvimento de suas forças de produção, justamente para garantir uma distribuição dos meios produzidos.

    Eu analiso a obra por uma teoria que acredito e estudo, podendo discordar ou não quando necessário. Ao contrário do que possa imaginar, não costumo me restringir ao bom ou mal, tratando o marxismo como uma religião - muito menso os seus sucessores.

    Se é lavagem cerebral ver que há vários problemas no sistema sócio-econômico social, eu não sei, mas acho bem mais complicado preferir falar mal de algo que propõe uma sociedade igualitária ao criticar a sociedade que está as nossas vistas. Seria interessante uma mior preocupação com o entorno, não é mesmo?

    Não sou a favor de Cuba, China, Venezuela e tenho motivos teóricos e práticos para isso. Mas eu nunca conversei com ninguém de nenhum desses países para saber o que é bom ou o que é ruim. Assim como, nunca fui aos Estados Unidos, provavelmente seu paraíso de vida. Acusar alguém de idiota é pior ainda,~já que ainda não descobriram em mim um desvio mental sério.

    Enfim, respeito a sua opinião e agradeço pelo comentário, mas bem que poderia colocar o nome, mesmo que falso. Não dá sequer para saberquem foi o gênio da literatura que deixou o comentário.

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