segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Sobre "A obra-prima ignorada" (Honoré de Balzac)

Algumas curiosidades despertam o interesse para se ler a novela balzaquiana A obra-prima ignorada. A primeira é colocada na contracapa do livro, que afirma que esta novela

tornou-se, porém, emblemática das opções e tormentos do artista obcecado por sua obra – e da atmosfera em que surge a arte moderna, alterando as concepções estéticas e lançando as bases de uma arte contemporânea ainda mais inovadora.
A influência de uma obra literária voltada ao ficcional sobre os artistas que surgiam já seria algo extremamente curioso ao sabermos que a intenção da sua criação não foi essa. O francês Honoré de Balzac (1799-1850) recebeu uma “encomenda” da revista francesa L’Artiste para escrever algo à maneira alemã.

Publicada em 1831, com dedicatória no ano de 1845 “A um lorde” – que ninguém soube quem seria - e assinada, após seis anos de revisão, com um “Paris, fevereiro de 1832”, A obra-prima ignorada traz dois personagens baseados em pessoas que existiram com um ficcional, que teriam convivido entre os anos de 1612 e 1613.


Dentre os seus admiradores está Paul Céssane, que se identificou com um de seus personagens, o jovem artista. Além dele, Pablo Picasso foi ao endereço indicado nesta obra ficcional para pintar um dos seus quadros mais famosos, Guernica, representação da Guerra Civil espanhola. E, coincidentemente, ele a começou cem anos após a primeira publicação da obra balzaquiana (1931) e terminou exatos cem anos depois (1937).
obra de François Porbus
ENREDO
O livro conta a busca de um jovem artista por maiores conhecimentos na arte da pintura. Nicolas Poussin procura o mestre François Porbus em seu ateliê para se aprimorar e acaba aprendendo com outro mestre que aparece justamente quando estava imerso em dúvidas se deveria “perturbar” ou não figura tão ilustre.

O livro é dividido em dois capítulos. O primeiro nas primeiras edições foi chamado de “Mestre Frenhofer”, nome do tal amigo de Porbus que, ao adentrar em seu ateliê faz duras e incríveis críticas a uma pintura queretratava uma mulher. Ao ouvir algumas reclamações do pintor, que teria representado fielmente a mulher que pousou para ele ao longo de dias, Frenhofer mostra com algumas pinceladas e muitos conselhos, como poderia melhorar a obra.

Uma das frases mais interessantes, talvez a que mais atiça a mente de pintores que lêem a obra como uma espécie de “manual” – se é que isso é possível e permitido no que se refere à arte -, é sobre a maneira de se apresentar diante da natureza: “a missão da arte não é copiar a natureza, mas expressá-la”.
autorretrato de Nicolas Poussin
Só após toda a aula dada é que ele aceita parcialmente a obra como algo razoável, a qual até que ele “poderia colocar a sua assinatura”. O jovem Poussin se surpreende com a sapiência do outro mestre e se sente ainda menor nesta arte, mesmo que ambos os mestres tenham aprovado a gravura que fora obrigado a fazer para provar suas habilidades.
Frenhofer convida os dois para visitarem sua casa, onde ele guarda a maior obra-prima já produzida por um ser humano: o retrato de uma mulher que leva em consideração todos os detalhes da vida “real”, que dá a sensação de se poder pegar através da figura. Porém, após atiçar a curiosidade do jovem Poussin, o pintor, um dos poucos alunos de Mabuse, afirma que não mostra ninguém a obra, a qual pinta há dez anos.

Na verdade, o velho mestre a trata como uma mulher, cujo título (na tradução lida) é Catharine Lescault, alguém cuja vida não é descrita em nenhuma linha. A única coisa dita é que Frenhofer necessita de uma nova modelo e a tendência é de ele rodar o mundo atrás de um modelo natural que possa representar “toda a beleza e pureza” presentes na parte da obra realizada. Aliás, o quadro está em reticente reconstrução.

Só que o título muda para “Gillette”, personagem feminino que se apaixona pelo jovem Nicolas Poussin e que o mesmo pretende utilizá-la como moeda de troca da visão da obra-prima mais particular de todas. O autor utiliza esta personagem para espelhar certa característica social da época. Segundo ele, na sociedade francesa era comum que jovens oriundas de famílias abonadas se apaixonassem por artistas.

O segundo capítulo é denominado “Catharine Lescault” e apresenta a negociação em torno da “troca” entre Gillette e a possibilidade de Poussin e Porbus poderem ver a obra pronta, algo que Frenhofer via como uma traição. E é este o tema presente neste trecho, que mistura as paixões de um artista pela mulher e por sua própria obra de arte, às vezes invertendo-se os papeis.

Outro ponto importante é o início da preocupação sobre o caráter da obra de arte, o que pode caracterizar algo como obra-prima. Preocupação que deve povoar as mentes culturais e críticas de arte com tanta arte pós-moderna, feita de privadas ou quadrados pretos em fundos brancos.

Para não contar como essa novela termina paramos por aqui o enredo desta obra balsaquiana e partiremos para algumas rápidas análises literárias (que me são possíveis no momento) na perspectiva lukacsiana.

ANÁLISEUma das principais categorias lukacsianas em relação à análise literária consiste na tipicidade dos personagens, porém sem a utilização de estereótipos. Gyorg Lukács elogia Honoré de Balzac em relação a isso, já que os seus personagens têm a capacidade de representar os personagens de sua época, com toda a influência de sua posição política e sócio-histórica, sem tipificá-los em generalizações sociais.

Mesmo no caso de Gillette que, como colocamos anteriormente, representaria uma das características de um grupo de jovens mulheres de classe média francesa do século XVII, apresenta particularidades que a caracterizam como personagem única. Apesar de fazer o que for pedido pelo seu amado, tende a hesitar em atender ao seu pedido para pousar ao velho pintor por saber que isso representaria o fim do amor por ele, representado pela troca pela apreciação de um objeto.

Como Frenhofer mesmo diz, “a missão da arte não é copiar a natureza, mas expressá-la”. Lukács, através da sua teoria do espelhamento, também acredita nisso. Afinal de contas uma obra é nada mais que uma subjetivação objetivada e sua produção é o que permite sair do processo cotidiano alienante.

Enquanto ser humano, todo Homo sapiens sapiens necessita de uma aprendizagem, não existe nada inerente a ele. E é a sua construção sócio-histórica que influenciará e formará o seu conteúdo sócio-político desenvolvido ao longo da história. A arte, enquanto produção subjetiva, tende a expor não só o lugar social de um autor, mas até mesmo o momento histórico em que ele está presente - ainda que algumas obras-primas perdurem por séculos.

Há um posfácio, Entre a vida e a arte, nesta edição escrita pelo crítico literário Teixeira Coelho. Entre outras coisas, Coelho critica algumas formas de análise estéticas e até mesmo filosóficas, igualando produções que analisam a sociedade capitalista de maneiras totalmente diferentes. Entre as críticas à escola marxiana está uma das suas principais formulações: o materialismo.

Coelho não gosta da “tentativa de objetivação” da obra de arte realização pelos teóricos marxistas. Entende que isso seria uma forma de “enquadrar” a produção artística, como se fosse um processo quase que mecanizado.

Na verdade, como já colocamos anteriormente e Lukács cita em seus estudos, em algum momento o artista terá que definir como ficará a sua produção, que não é obra do acaso ou da busca de um Eu hegeliano, acima de tudo e de todos e único possível dono da sapiência universal, que guiaria o artista. Frenhofer aparenta representar esta linha teórica ao tentar produzir a obra-prima, inconcebível e ignorável a qualquer outro ser humano.

Conheça os comentários sobre livros de Honoré de Balzac:

“Que pagas?” – Eugênia Grandet (Honoré de Balzac)

A mulher de (quase) trinta anos - Honoré de Balzac



(BALZAC, Honoré de. A obra-prima ignorada. Tradução: Teixeira Coelho. São Paulo: Comunique, 2003. Título original:Lê chef-d’oeuvre inconnu. Entre a vida e a arte, posfácio de Teixeira Coelho).

6 comentários:

  1. Além do que você relatou sobre a tipicidade dos personangens, Balzac tem uma coisa que eu achei o mais interessante das obras dele (só li o Mulher de 30 anos e não gostei muito): é que ele reutiliza personagens em suas obras.
    Durante o livro as notas de rodapé mostravam em que outros romances certos personagens existiam.
    Achei uma característica estilística interessante.

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  2. porra cara custava contar o final

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  3. Tb acho pq amanha vou apresentar um seminario sobre esse texto.Mas valeu.

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    1. Pessoal, o livro é fino e a intenção do blog é estimular o leitor para lê-lo. Não teria graça se eu contasse o final, né?

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  4. Boa análise, professor! Grato! Abraços.

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