domingo, 2 de junho de 2013

O "complexo de vira-latas" (e o mito Obdulio) na memória de Nelson

Brasil saindo na frente e levando a virada em pleno Estádio localizado no Maracanã, Rio de Janeiro, lotado de torcedores e o narrador vem com um: "Silêncio no Maracanã". Além do gol de empate do Paulinho na reinauguração do agora Estádio Mário Filho, muita coisa mudou de 1950 para cá. A seleção do país conquistou cinco títulos mundiais, o nome do estádio mudou, as gerais acabaram e cabem bem menos que 200 mil pessoas naquele espaço, que agora "parece estar na Europa". Ainda assim, o que ocorreu no dia 16 de julho de 1950 segue na memória de quem curte futebol no país, imagina para quem viu ocorrer...

Depois de muito tempo, retornamos com os destaques das crônicas publicadas em "À sombra das chuteiras imortais". Mesmo com a reprodução dos textos publicados a partir de 1955, uma das minhas contestações foi que aquela tarde de 50 ficara marcada na vida de Nelson Rodrigues, mesmo com o fim do "complexo de vira-latas", ou o seu abandono temporal, a partir de 8 anos depois.

Em 1956, o tema apareceu por duas vezes, em 7 de abril ("Freud no futebol"), ele repete, com certa ironia, uma afirmação de uma "autoridade", em que "só um Freud explicaria a derrota do Brasil frente à Hungria [1954], do Brasil frente ao Uruguai e, em suma, qualquer derrota do homem brasileiro do futebol ou fora dele” (26). Para 4 dias depois culpar as goleadas das partidas anteriores, contra a Suécia (6 a 1) e Espanha (7 a 1) perante a derrota que se dera numa casa lotada:

“É uma goleada e vamos e venhamos: - qualquer goleada promove duas vítimas: - o que perde e o que ganha. Basta folhear a história do futebol. E nós temos, à mão, um exemplo crudelíssimo, que ainda hoje nos enfurece: - o do match Brasil X Espanha. Perdemos o campeonato do mundo porque, dias antes, goleamos de uma maneira quase imoral. Tivéssemos obtido uma vitória mais sóbria e menos feérica, trucidaríamos o Uruguai com os pés nas costas” (27).

Como já fizera em trecho relatado na postagem anterior sobre este livro, Nelson não gostava quando a torcida não ajudava aos jogadores - o que imaginaria dos dias de hoje, hein? Para ele, havia uma relação entre a torcida e a seleção, em que cada tipo de jogador correspondia a um tipo de jogador, dos melhores aos piores, sendo que o escrete brasileiro traduziria "uma projeção de nossos defeitos e de nossas qualidades". Assim, ele concluiu que "em 50, houve mais que o revés de onze sujeitos, houve o fracasso do homem brasileiro” (50 - O gordo salvador – 3/5/58).

Sarcasticamente ou não, Nelson confiava no time brasileiro e criticava também os seus companheiros jornalistas por olharem torto para o time que iria "nos" representar na Suécia dias depois. Em "Complexo e vira-latas" (31/5/58), última crônica antes da Copa do Mundo, ele narra o que representava a derrota de 1950 para o povo brasileiro, num relato que mistura a análise sociológica, com antropológica e psicológica:

“Eis a verdade, amigos: - desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse ‘arrancou’ como poderia dizer: - ‘extraiu’ de nós o título como se fosse um dente” (51).

Em seguida, ainda no mesmo texto, surge a explicação para um dos termos mais famosos da produção de Nelson Rodrigues, o "complexo de vira-latas":

“Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos ‘os maiores’ é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: - porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos” (52).

O texto ainda representa a transformação de mito que a mídia esportiva nacional transformou o capitão uruguaio Obdulio Varela. De real, ele teria comprado várias edições de um jornal que colocara já no domingo o poster dos campeões do mundo, e teria forrado o vestiário do Uruguai, ordenando que cada jogador urinasse nos jornais. De possivelmente falso, o tapa no rosto de Bigode, que a partir dali ficaria com medo e não jogaria bem - deixando de cobrir os avanços de Ghiggia pelo lado esquerdo.

(Negros, o goleiro Barbosa, o lateral Bigode e o zagueiro Juvenal foram apontados como grandes culpados pela derrota da final, mesmo após 61 anos com a proibição da escravidão. Especialmente o goleiro vascaíno, que repetiria até os seus últimos dias que no Brasil não há prisão perpétua, ainda assim ele pagou a pena dele pelo resto da vida).

O mito Obdulio, mais até do que o ponteiro Ghiggia, que dera o passe para o primeiro e fizera o gol do título, seguia mesmo com o bicampeonato brasileiro (1958/1962), caso deste trecho de uma crônica publicada no dia 18 de novembro de 1963 ("O divino eloquente"), reafirmando algo que segue praticamente no inconsciente coletivo brasileiro, o time de futebol como representação da pátria, "o Brasil joga hoje":

“Amigos, vocês se lembram da vergonha de 50. Foi uma humilhação pior que a de Canudos. O uruguaio Obdulio ganhou de nosso escrete no grito e no dedo na cara. Não me venham dizer que o escrete é apenas um time. Não. Se uma equipe entra em campo com o nome do Brasil e tendo por fundo musical o hino pátrio – é como se fosse a pátria em calção e chuteiras, a dar botinadas e a receber botinadas” (102).

A precoce eliminação na Copa do Mundo de 1966, com graves erros de administração - a ponto de 4 seleções diferentes treinarem meses antes da Copa, sendo definidos os jogadores pouco antes da viagem à Inglaterra -, relembraram a tragédia de 1950. Após as derrotas para a Hungria e para Portugal, que caçou Pelé na partida, por 3 a 1, ele destaca a vergonha ainda maior daquele momento:

“Amigos, eis 80 milhões de brasileiros numa humilhação feroz. Eu diria que a vergonha de 50 foi mais amena, mais cordial. Naquela ocasião, não tínhamos o bicampeonato. Ainda não se instalara em nosso futebol o mito Pelé. Ah, o brasileiro de 50 era um humilde de babar na gravata. Quando passava a carrocinha de cachorro, cada um de nós tinha medo de ser laçado também” (129 – A vergonha – 20/7/66).

Num texto de abril de 1969 ("Um escrete de feras"), período que até Pelé sofria críticas de torcedores e parte da imprensa esportiva, sendo o escrete treinado pelo comunista João Saldanha em pleno governo militar, Nelson relembrava do seu mito Obdulio Varela para defender o amigo treinador da seleção:

“O ‘escrete de feras’ é uma velha utopia de todos os brasileiros, inclusive a grã-fina das narinas de cadáver. A humilhação de 50, jamais cicatrizada, ainda pinga sangue. Todo escrete tem a sua fera. Naquela ocasião, a fera estava do outro lado e chamava-se Obdulio Varela. O escrete de João terá onze Obdulios” (144).



PRÓXIMOS
Para não prometer de novo e demorar para cumprir, sejamos honestos, pode ser que os textos sobre as demais "fases" das crônicas organizadas por Ruy Castro neste livro não sejam comentados por aqui, como pode ser que sim. Na dúvida, repito que À sombra das chuteiras imortais contém textos publicados de 1955 a 1959 na Manchete Esportiva e de 1962 a 1970 em O Globo. Vale a pena ler.

REFERÊNCIA
RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol; seleção e notas de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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