sexta-feira, 27 de julho de 2012

Os "Dias na Birmânia" de Orwell

“Em tudo o que escrevi, desde 1936, tomei partido, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, como eu o entendo” (260).

Comecemos a tratar de Dias na Birmânia de uma forma diferente. Ao final do livro há a seção O Autor e sua Obra, que apresenta a frase que serve como epígrafo deste texto e que também nos conta que Eric Arthur Blair, o homem por trás do pseudônimo George Orwell, viveu dos 19 aos 25 anos (1922 a 1928) na Birmânia, contando neste livro, portanto, boa parte das relações entre colonizadores e colonizados que viu nesta experiência, num livro que veio a ser publicado em 1934.

Desta feita, Dias na Birmânia, um livro que passei meses e meses tentando achar na biblioteca da universidade, só o encontrando quando já não o procurava. Este livro veio para se juntar a outros, que foram publicados depois, mas que eu li antes: A flor da Inglaterra (1936), Um pouco de ar, por favor! (1939), Revolução dos Bichos (1945) e 1984 (1948).

Por vários motivos que não vale eu destacar aqui, não teria como fazer uma super análise como algumas as quais eu fiz nos livros anteriores de Orwell que, indiscutivelmente, é um dos melhores autores que já li, principalmente por conta da frase que reflete bem o como eu interpreto as suas obras frente à sociedade que o circundava. Neste caso, é a relação do império britânico com a colônia.

Alguém me explica essa capa?
LIVRO
A história de Dias na Birmânia, até mesmo pelo ano em que foi escrita, é bem mais simples que as demais já analisadas. Não traz um percurso de um personagem que por ir de encontro às leis e normas vigentes acaba sofrendo ao final por conta disso. Quer dizer, a história de Flory caminha por entre as normas que os britânicos acabaram criando para a Birmânia, ele é contrário à relação de submissão existente, mas não dá para dizer que isso seja definitivo para o seu trajeto - ou será? Enfim, quem quiser que tire a dúvida lendo o livro.

Orwell escreve de uma maneira bem interessante, altamente descritiva, a tal ponto que os primeiros capítulos do livro aparecem todos os personagens que irão ser desenvolvidos ao longo do mesmo. Pode até ficar um pouco bagunçado no início, gerando histórias paralelas que tendem a se cruzar depois das 20 ou 30 primeiras páginas e desanuviar as dúvidas que se acumulam nas cabeças dos leitores.

Uma dessas figuras apresentadas no início é um burocrata local U Po Kyin, por quem parece que a história vai se centrar, que ele vai ter participação fundamental no livro e, vá lá, dependendo do ponto de vista até que ele atua de forma determinante, mas não chega a ser um dos principais personagens. Porém, não deixa de ser interessante. Vejam um trecho de apresentação deste sujeito. Contem quantos assim vocês lembram da política e do judiciário no Brasil:

“Assim que surgia qualquer acusação contra ele, U Po Kyin simplesmente a desacreditava através do suborno de inúmeras testemunhas, e adotava uma série de contra-ataques que o deixavam numa posição mais forte ainda. Ele era praticamente invulnerável por ser um bom juiz dos homens, por não se arriscar tomando atitudes extremadas, e, por estar a par das intrigas, não fracassava pela negligência ou pela ignorância. Podia-se prever com segurança que ele nunca seria desmascarado; sua vida seria marcada pelo sucesso e ele morreria coberto de honrarias e recheado de milhares de rupias” (p. 9). 

Em Kyuktada, cidade onde se dá a história, os britânicos têm um clube em que só eles podem participar. A história se desenvolve tendo como uma das bases quando o responsável local, o Sr. Macgregor, resolve seguir norma geral para as colônicas do Reino Unido e convidar um nativo para se juntar a eles. Em geral, os participantes do clube não querem a participação do Outro, que na verdade é o dono da terra, dentre eles. Ellis é um dos maiores entusiastas da "pureza" do clube. Percebe-se o tamanho do preconceito e, além disso, da submissão que a maioria dos ingleses tinham:

“Moramos aqui para governar uma récua de porcos negros, que desde o começo da humanidade vêm sendo escravos, e em vez de cumprimos nossa obrigação, o que fazemos? Resolvemos tratá-los como iguais! E vocês são uns merdas por acharem isso muito natural. [...] Céus! Parece até que vocês gostam dessa negrada toda! Francamente, não sei o que aconteceu com a gente, não sei mesmo!” (p. 25). 

A exceção é Flory, que não vê problema algum em conviver com os nativos. Pelo contrário, ele geralmente acha interessante. Alguns momentos que mostram a contradição do pensamento pequeno do nativo, mais voltado à burocracia de um emprego ruim, e a visão realista do papel dos britânicos segundo alguém que tende a respeitar os nativos são as conversas entre Flory e o Dr. Veraswami:

“[Veraswami] - Será que os birmaneses poderiam comerciar sozinhos? Saberiam construir máquinas, navios, estradas de ferro e de rodagem? Sem vocês, nós não seríamos coisa alguma. O que aconteceria com as florestas da Birmânia se os ingleses não estivessem aqui? Seriam imediatamente vendidas aos japoneses, que as devastariam, destruindo-as. No entanto, sob sua jurisdição, nossas florestas estão até melhores, pois, enquanto os negociantes ingleses desenvolvem os recursos do país, os funcionários do governo nos civilizam, elevando-nos ao seu nível, e tudo isso por puro espírito comunitário. É, na verdade, um esplêndido testemunho de altruísmo” (p. 40). 

“[Flory] - Nós ensinamos os jovens a beber uísque a jogar futebol e nada mais além disso. Olhe para as escolas: fábricas de futuros escrivães onde jamais se ensinou sequer um artesanato manual útil a qualquer indiano. Não nos atrevemos a isso, pois temos medo da competição na indústria. Chegamos até a destruir algumas indústrias locais, o que me leva a perguntar: onde se encontra atualmente a musselina indiana? No início da década de 1840, construíam-se navios mercantes na Índia, ao passo que hoje em dia não se constrói sequer um barco pesqueiro! [...] As únicas aças orientais que se desenvolveram rapidamente foram as independentes. Não vou citar o Japão, mas o Sião, por exemplo...” (p. 40). 

Flory quer indicar Veraswami para o clube, mas sempre fica sem jeito de encarar Ellis e os demais na hora da assembleia do clube. U Po Kyin quer ser o indicado e vai fazer de tudo para o médico não assumir o posto. Calúnias através de correspondências, revolta fabricada e até prejudica algum branco, nada pode passar por cima de alguém cuja caracterização é bem burlesca.

No meio disso, aparece a sobrinha dos Senhores Lackersteens. Elizabeth vem direto da França após uma vida cheia de problemas, com uma mãe que se acha artista e vive de forma boêmia, enquanto ela tem que trabalhar no que dá. A ida para a Birmânia aparece como única opção. Flory e ela se encontram após um búfalo encará-la de frente. Mesmo sem muito perigo, o britânico com uma cicatriz no rosto a salva e vira herói.

A história caminha com os dois se conhecendo. Flory querendo alguém para fazer companhia e poder conversar sobre várias coisas que seus livros diziam. Eram os livros os companheiros para uma solidão de alguém depois dos 30 anos fora de seu lugar de origem. O problema é que ela não gostava de conversas assim, mas queria saber mesmo era de caça, de aventuras. Até sair com ela numa caçada e surpreendentemente ir muito bem, com direito a um leopardo morto.

Como sempre para nós homens, uma mulher muda qualquer coração solitário e se esquece que a realidade pode ser menos dura do que parecia:

“'O que acontecem com meu passado?’, voltou a pensar enquanto cruzava o jardim, sentindo-se feliz por haver compreendido que os crentes estão certos quando dizem que existe a salvação e que a vida pode recomeçar. Ele passou pela entrada e lhe pareceu que sua casa, as flores, os criados, toda aquela vida que havia tão pouco tempo parecia inundada de tédio e saudade, de alguma forma tinha se transformado numa existência nova, significativa e inesgotavelmente bela. Como tudo podia ser bom quando se tinha alguém com quem compartilhar essa felicidade! Como se podia amar este país, bastando para isso não estar sozinho!” (p. 137). 

Mas quem quer alegria que não leia livros de George Orwell. Só malucos que nem esse que vos escreve que se tranquiliza com seus livros - com exceção de Winston, em 1984. Tudo muda e depois ganha uma reviravolta e mais outra até o final não ser feliz, e isso não tem nada de spoiler.

Uma dessas mudanças vem com a morte de um agente florestal que fazia parte do clube, ainda que não com participação efetiva. Mas o assassinado de um branco, independentemente quem fosse, era diferente e isso é uma das críticas de Orwell aos colonizadores:

"Ninguém particularmente ficou muito aborrecido, pois Maxwell era quase uma nulidade – apenas ‘um bom rapaz’, como dez mil nos rapazes ex colore da Birmânia, sem amigos íntimos. Nenhum dos europeus sentiu realmente sua morte, mas isso não queria dizer que não estivessem furiosos. Pelo contrário, na verdade estavam lívidos de ódio, pois o imperdoável havia ocorrido – um branco tinha sido assassinado – e, quando isso acontecia era como se uma corrente elétrica atingisse a colônia inglesa do Oriente. Uma média de oitocentas pessoas são mortas anualmente na Birmânia, e isso não tem a menor repercussão; contudo, o assassinato de um homem branco é considerado um sacrilégio, uma monstruosidade” (214).


Para finalizar, um bom trecho destas reviravoltas do livro, com destaque para um autor/ativista revolucionário russo bem famoso, que acaba virando a comparação para saber se algo era bom ou ruim para os britânicos na Birmânia:

“Agora ela [Elizabeth] entendia perfeitamente o caráter de Flory, por que ele a aborrecia tanto e a irritava também. Era um ‘intelectual’ – palavra feia no seu vocabulário – que poderia juntar-se a Lênin, A. J. Cook e os poetas sujos dos cafés de Montparnasse” (179). 

“Do jeito que as coisas estavam, Flory poderia entrar no clube e fazer um discurso sobre Lênin que seria, pelo menos, ouvido por todos” (231).


Eu encaixo Dias na Birmânia abaixo de 1984 e Revolução dos Bichos por motivos óbvios que fazem destes dois livros clássicos. Porém, quase no mesmo nível de A flor da Inglaterra, por achar que o soco no estômago que o leitor recebe neste livro é maior, e acima de Um pouco de ar, por favor!


Pela propaganda que me faziam para ler este livro e, além disso, pela espera que tive para lê-lo, pensava em algo um pouquinho mais impactante. Talvez, a ansiedade e o conhecimento de outros livros de Orwell tenham me feito esperar muito, mas como? Este é um dos primeiros livros dele!

Referência
ORWELL, George. Dias na Birmânia. São Paulo: Círculo do Livro, s/a. (1934). 

2 comentários:

  1. Estou a ler este livro agora. Nos livros do George Orwell é normal havar as reviravoltas e depois, no final, tudo voltar ao ponto de partida. Espero sempre um final pouco feliz nos livros dele, mas surpreendi-me em "O Vil Metal" (que penso que é aquele que no Brasil foi publicado com o nome "A Flor de Inglaterra") porque o protagonista acaba por se casar com a Rosemary e até achei o final agradável. É verdade que ele tem que aceitar um emprego que desprezava, para ganhar o suficiente para sustentar uma família. Ou seja, tem que se resignar. Mas até prevejo dali um futuro agradável.

    Estou a ver que este não tem um final tão agradável, mas isso é de esperar dos livros do Orwell :) . Adoro este autor.

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    1. Obrigado pelo comentário. Realmente a tradução aqui para o Brasil foi "A Flor da Inglaterra", o final parece ser agradável, mas representa a submissão ao que ele tanto criticava. Ah, escrevi sobre ele em dois posts por aqui: http://terrainteressados.blogspot.com.br/2008/12/da-proximidade-ao-afastamento.html e http://terrainteressados.blogspot.com.br/2008/12/da-proximidade-ao-afastamento-parte-2.html.

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