quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

[Por Trás do Gol] Tragédia em Port Said e a Primavera Árabe

O que ocorreu ontem no Estádio Port Said, em cidade de mesmo nome do Egito, com 74 mortos e cerca de mil feridos, poderia ser muito bem utilizado por quem ojeriza o futebol como uma "prova" da violência  que o esporte pode possibilitar. Partindo do lado apocalíptico, que o define como "ópio do povo", alienador, que alguns optam por entender a partir do seu potencial de recepção no mundo. Não é tanto, mas também tampouco...

Wisnik, num livro recém comentado aqui no blog, aponta a potência do futebol perante várias dualidades e contradições. Uma delas é a capacidade de centrar conflitos dentro de campo, numa competição normatizada; um conflito dentro das regras e do fair play. Porém, ao mesmo tempo, há a possibilidade de se criar rivalidades que se aprofundam para além das quatro linhas, em estereótipos que não necessariamente refletem a realidade, mas que estimulam a violência entre as torcidas.

Pelo que se escreveu e se mostrou desde ontem, há uma forte rivalidade entre o Al Ahly e o Al Masry. O Ahly, que foi campeão asiático, mais recentemente, em 2005, 2006 e 2008, jogava fora de casa e abriu o placar. No segundo tempo, o Masry virou e vencia por 3 a 1. A cada gol dos donos da casa, segundo o atacante brasileiro Fábio Júnior, do Ahly, havia invasão da torcida. Depois do último gol, isso se deu de uma forma tão grande que o árbitro teve que encerrar a partida.

Em vez de "só" comemorar a vitória - importante, pois o rival estava invicto no torneio -, a torcida optou por fazer uma caça aos adversários, com os jogadores, desesperados, partindo para o vestiário sem ter a certeza que poderiam sair. Pior para seus torcedores, que ficaram trancados no estádio sem qualquer proteção. Além da pouca presença policial para um jogo de risco, sobreviventes dizem que os seguranças e policiais nada fizeram para tentar impedir a tragédia e todas as saídas estavam trancadas. Uma das justificativas levantadas é que os policiais estão evitando reprimir qualquer manifestação (!) - mesmo que ela signifique 74 pessoas mortas...

Do lado ocidental, as "tradicionais" críticas ao vandalismo ainda presente num lugar em que a "evolução" ainda não chegara - como se por aqui não houvesse confronto entre TOs... Não faltaram comparações com outras tragédias no futebol mundial, a última em terras "desenvolvidas" ocorrendo em 1989. Após isso, optou-se por fazer uma "higienização" do futebol inglês, que se varreu os hooligans de seus estádios, tirou muito torcedor de "verdade" deles. Em suma, teatralizou-se o esporte.

Um dos jogadores do Ahly acrescentou ainda que a Federação sabia dos riscos de manter o Campeonato Egípcio, mas assim o fez por conta do dinheiro. Sabendo do perigo, os jogadores também seriam culpados por entrarem em campo.

PRIMAVERA ÁRABE
Há cerca de um ano, movimentos sociais se reuniam na Praça Tahrir para derrubar o governo autoritário de Hosni Mubarak, em meio a protestos que seguiam outros países e que ficou conhecido como "Primavera Árabe". Algo que continua em andamento, por mais que pouco a mídia ocidental nos mantenha informados sobre.

Torcedores organizados do Al Ahly e do Zamalek, rivais no Cairo, uniram-se para transformar a organização da torcida em manifestação social. E é aí que vem o fato "além das quatro linhas". Inclusive, os "ultras" - denominação para torcida extremamente fanática, com ligações de extrema direita ou de extrema esquerda - do Al Ahly fundaram um partido, o Beladi, para difundir "o crescente espírito de liberdade política do país". Liberdade esta que não se aplica na prática, já que congressistas de setores ligados à direita são maioria e a junta militar continua no poder, mesmo uma ano após a saída  de Mubarak.

Segundo os torcedores, que voltaram a se manifestar hoje partindo da Praça Tahrir e da sede do clube em direção ao Ministério do Interior do Egito, a omissão por parte do Estado se deu porque os torcedores participaram e participam diretamente dos protestos contra o antigo regime e o atual, de suposta transição. Com alguns políticos se acrescentando à ideia de que a tragédia teria sido orquestrada por pessoas que defendiam a situação anterior.

Se a Polícia não trabalhou no jogo, oprimiu a manifestação de hoje, deixando (mais) cerca de 400 pessoas feridas, que foram alvo de bombas de gás lacrimogêneo.

IMPRENSA
Acompanhando pela internet e as imagens da TV, primeiro é preciso dizer que o audiovisual pouco disse de concreto, atados às informações das agências internacionais e sem nenhuma explicação para além de briga entre torcedores. No caso da internet, há algumas diferenças.

Ontem fiquei curioso com uma notícia, se é que dá para chamar disso uma colcha de matérias de agências internacionais, do portal IG. O título é: "Torcedores estão envolvidos em recente crise política no Egito". A dúvida inicial: "torcedores de qual time?". Reli o texto hoje e entendi - algo que coloquei acima. Mas o final dele justifica o tom negativo presente no título, que acaba revertendo a situação de quem foi oprimido, algo bem comum por essas bandas:

"Entre os torcedores egípcios, os do Al-Ahly, conhecidos como "ultras" e alvos dos ataques desta quarta-feira, são particularmente violentos. Recentemente eles fundaram o partido político Beladi, que quer dizer meu país, para difundir o crescente espírito de liberdade política no Egito.

A ideia nasceu depois que as torcidas organizadas conseguiram traduzir as táticas de rivalidade esportiva para a revolução urbana. Mas, em alguns protestos recentes, os ultras foram acusados de incentivar a violência entre os manifestantes e as forças de segurança, e até de combater a polícia".

Confesso não ver problema em reverter a organização das torcidas de futebol para a revolução urbana como a que se deu na região árabe. Já fiz, inclusive, matéria no tempo da graduação sobre uma torcida ultra aqui do Brasil, do Ferroviário-CE, que defende: "Nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes". Nem precisava dizer que sou totalmente contra aos ultras fascistas, muito encontrados, e difundidos pela mídia, na Europa discriminando jogadores negros...

POR MAIS INFORMAÇÕES DAS LUTAS ÁRABES!
O Campeonato Egípcio foi interrompido hoje, mas reiteramos que as manifestações em muitos países árabes não pararam e precisam ser difundidas para o Ocidente. Um dos grandes problemas foi a quase "desideologização" dos mesmos, ou seja, eles sabiam o que não queriam, mas não o que colocar no lugar. Se a falta de partido na vanguarda é algo interessante, isso gera o problema de não se ter o que por no lugar.

Que os fatos ocorridos ontem e hoje no Egito, dadas as devidas condolências e até como fator de justiça, signifiquem uma atitude de maior observação do que ainda continua acontecendo no Oriente Médio. Não se pode calar perante absurdos cometidos contra as pessoas em qualquer lugar do mundo - e isso serve também para o que aconteceu na desocupação do Pinheirinho, aqui no Brasil. Não nos esqueçamos, não deixemos de falar e não deixemos de nos comunicar sobre tamanhas atrocidades.

2 comentários:

  1. Quem generaliza e coloca a culpa no futebol por tragédias como esta entendem pouco ou nada sobre as contradições existentes no esporte.

    Desde aspectos políticos até religiosas, o futebol sempre teve que lidar com o problema da rivalidade de seus torcedores dentro ou fora das quatro linhas.

    Cada caso é diferente e o que o torcedor que descamba para a violência faz enquanto torce para o seu clube vem do quanto ele coloca importância no clube e do que esse time representa para ele.

    Para estes malucos descontrolados, que dão importância absurda aos resultados, a sociedade seja ela a egípcia, a brasileira e inglesa não está nem nunca estará livre, pois não escolhe-se torcedor. Ele que assim faz com o clube.

    Encerro com algo que li e não vi você comentar, Anderson. Uma matéria que informava que os policiais não reagiram à violência e ficaram assistindo porque tiveram medo de apanhar. Faz-me rir.

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  2. Valeu, Bruno, não vi esta matéria sobre o medo dos policiais. Fato é que faltou uma maior organização para garantir a segurança nesta partida, o que seria comprovado por este sentimento dos policiais presentes.

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