quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

As Linhas Tortas de Graciliano

Para conhecer um autor muitas vezes basta ler os seus escritos. Mesmo para os romancistas, aqui ou acolá há de aparecer traços da sua formação sociocultural. Às vezes, nem assim. É necessário buscar mais informações em textos mais íntimos sobre a infância ou memórias escritas em momentos ruins. Felizmente, se nem assim há a conformação sobre as ideias próprias do autor, para além de suas personagens, há a possibilidade de se buscar uma publicação com crônicas. Especialmente a partir dos autores modernistas. Alguns dos nossos melhores escritores também ocupavam colunas de jornal.

Se 2012 marcou o centenário de Graciliano Ramos, em 20 de março de 1953 completará 60 anos de sua morte, com a 11ª Feira Literária Internacional de Parati sendo em sua homenagem. Assim, esta postagem também segue o âmbito das homenagens ao autor natural da alagoana Quebrangulo. Obra póstuma, publicada em 1963, Linhas Tortas é um compêndio de crônicas escritas de 1915 a 1953, perpassando, portanto, dos 23 aos 60 anos do Mestre Graça.

Linhas Tortas está dividido em duas partes. A primeira tem dois conjuntos de textos: "Linhas Tortas" e "Traços a Esmo", publicadas por R.O. em 1915 no Paraíba do Sul (RJ) e por J. Calisto em 1921 em O Índio, respectivamente. A segunda parte, mais numerosa, conta com textos com títulos, publicados a partir da década de 1930. Em comum, em todos os períodos, uma escrita ácida, cheia de ironia, mesmo para os amigos ou figuras "míticas" da literatura nacional.

Os assuntos são vários, com destaque para as análises, debates e provocações referentes à produção literária nacional. Uma lista de autores são citados ou comentados, dentre os quais eu anotei os seguintes: Machado de Assis, Eça de Queiroz, Balzac, Jorge de Lima, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, José Lins do Rêgo, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa e Aurélio Buarque de Holanda.

O TRABALHO DO ESCRITOR
Dentre as crônicas é possível observar como Graciliano trata com certa ironia também o seu ato de escrever, mas com uma criatividade incrível para preencher as páginas dos jornais mesmo em dias que não se tem um grande assunto para isso - décadas depois, Luís Fernando Veríssimo vive a dizer que, para ele, escrever é muito difícil.

Em 15 de abril de 1915, ele estreava como colunista do jornal Paraíba do Sul com um texto em que faz o possível para destacar que só assumiu o espaço porque o diretor do jornal quis, apesar de todas suas advertências sobre uma possível falta de qualidade para atender aos desejos dos futuros leitores: “O essencial é que se escreva. Não quiseram que esta coluna ficasse em branco, malgrado todas as razões que foram apresentadas a secretário da folha. Era preciso que se escrevesse, qualquer coisa a esmo, embora” (18).

Décadas depois (em "Alguns tipos sem importância", agosto de 1939), já com alguns livros publicados e prêmios recebidos, ele tenta responder uma questão muito comum: em quem se baseava para escrever suas personagens:

“Referindo-me, portanto, a essa cambada não penso no que ela é hoje multiforme, incongruente, modificada pelo público, mas nos tipos eu imaginei e tentei compor inutilmente. Falharam todos. Esta declaração é necessária: talvez não anule, mas pelo menos atenuará uns toques de vaidade que por acaso apareçam nas linhas que se seguem” (194).

A conclusão sobre eles vem a ser genial, ainda que deixe mais dúvidas para quem voltar a perguntar sobre o assunto:

“Todos os meus tipos foram constituídos por observações apanhadas aqui e ali, durante muitos anos. É o que penso, mas talvez me engane. É possível que eles não sejam senão pedaços de mim mesmo e que o vagabundo, o coronel assassino, o funcionário e a cadela não existam” (196).

RESPOSTAS
Há colunas que eu gostei ainda mais, principalmente aquelas dedicadas a respostas a leitores que questionaram informações ou os comentários realizados em textos anteriores.

Um destes é "Manuel Tavares assassinou um homem", reprodução de uma "Carta de um jurado a cavalheiro de importância", publicada por J. Calisto em O Índio, jornal de Palmeira dos Índios em fevereiro de 1921. A carta trata de uma oferta de uma decisão favorável às pessoas ricas da cidade para não prender ou punir familiares que tenham cometido algum crime. Vejamos o exemplo de argumento deste jurado:

“‘Manuel Tavares assassinou um homem’. Fica-se a incerteza sore se foi Manuel Tavares o assassino ou o assassinado. Sendo ‘assassinar’ um verbo transitivo, também lhe pode servir de agente Manuel Tavares como ‘um homem’. Em casos assim ambíguos, a colocação das palavras em nada influi quanto ao sentido delas. Ninguém nos pode afirmar se o período está em ordem direta ou em ordem inversa. Dizem que ‘Manuel Tavares’ é o sujeito. Por quê? Porque está preso? É absurdo. Não há em gramática nenhuma regra que nos autorize a dizer que agente da ação é o que está na cadeia” (64).

Para quem conhece o Nordeste hoje sabe que coisas assim ainda são passíveis de ocorrer, apesar de geralmente não deixarem registros - ou que os jornalistas não "queiram" procurar estes rastros. Na década de 1920, então, de coronéis e cangaço disputando o espaço no medo das pessoas... Em abril, Graciliano responderia a uma carta de alguém que achou um absurdo o que ele escrevera, como se fosse algo de suma importância para fazer com que as pessoas passem a desacreditar no trabalho de quaisquer júris.

Ironicamente, o autor vai pedindo desculpas e assumindo a sua incapacidade para ocupar um espaço em qualquer jornal:

"Meu arrependimento é grande. Eu devia ter pintado um juiz de fato de olhos azuis, de cabelos loiros, e encaracolados, vestido de anjo. Quem me lesse ficaria pensando que isto é o paraíso e, naturalmente, por imitação, penduraria às costas umas asas de trapo, amarradas a barbante e colaria à cabeça uma rodela de papelão coberta de lata” (77-8).

REGIONALISMO
Uma preocupação frequente de Graciliano ao longo das crônicas publicadas em Linhas Tortas é a de defender o nacionalismo, com fortes críticas a elementos estrangeiros presentes na nossa sociedade - caso do football na década de 1920, identificado como um "modismo" -, assim como, especificamente, a produção literária dos autores regionalistas, casos dele, de Jorge Amado e Rachel de Queiroz.

Em "Norte e Sul", publicada em abril de 1937, Graciliano critica os autores que optam por escrever por países jamais conhecidos em vez de dedicaram uma atenção maior à sociedade em que está presente, as diferenças existentes no próprio país, no entendimento de que para escrever sobre um lugar é necessário conhecer a formação sociocultural do mesmo. Para ele, trata-se de uma fuga ao que incomoda a elite nacional, que prefere coisas que só existiriam na imaginação:

“Os inimigos da vida torcem o nariz e fecham os olhos diante da narrativa crua, da expressão áspera. Querem que se fabrique nos romances um mundo diferente deste, uma confusa humanidade só de almas, cheias de sofrimentos atrapalhados que o leitor comum não entende. Põem essas almas longe da terra, soltas no espaço. Um espiritismo literário excelente como tapeação. Não admitem as dores ordinárias, que sentimos por as encontrarmos em toda a parte, em nós e fora de nós. A miséria é incômoda” (136).

Ele voltaria ao assunto em texto de setembro do mesmo ano, em que faz a diferença dele e de outrxs para "Os donos da literatura". O autor não conseguiu sobreviver de suas publicações, trabalhando em dois turnos até os últimos anos de sua vida:

“A literatura honorária, escorada e oficial, vive sempre lá fora, chega aqui de passagem e quando aparece, é vista de longe, rolando em automóvel; a literatura efetiva, mal vestida e de segunda classe, mora no interior ou vegeta aqui, no subúrbio, e viaja a bonde, às vezes de pingente” (101).

Apesar dessa crítica a quem opta por esconder a miséria, em "O romance de Jorge Amado", um comentário sobre Suor publicado em 1935, ele destaca esta preocupação do autor baiano, "um desses escritores inimigos da convenção e da metáfora, desabusados, observadores atentos" (93). Porém, ele teria se excedido na demonstração da luta de classes, por conta da sua ideologia: "Não nos parece que o autor, revolucionário, precisasse fazer mais que exibir a miséria e o descontentamento dos hóspedes do casarão. A obra não seria menos boa por isso" (95). 

Algo que já destacamos em outros textos, apesar de também ser comunista, Graciliano buscava não "contaminar" a sua produção literária com sua opção político-ideológica, de maneira que a sua forma de ver o mundo fosse expressada na sua história sem qualquer imposição política. Era uma reflexão sobre o que vinha ocorrendo nos países soviéticos, sobre a qual ele visitou e escreveu num diário de viagem suas experiências.


E O FUTEBOL?
Aqui foram destacados os trechos de colunas que mais me chamaram a atenção. É claro que houve o texto sobre futebol, em que Graciliano Ramos faz as críticas a este esporte bretão, que não conseguiria avançar aqui no Brasil. Mas este é um assunto que merece um texto em separado, com toda a certeza. Afinal, como pode-se perceber pela quantidade de vezes que escrevemos sobre este autor por aqui, há uma clara admiração para além do fato de ele ter nascido no mesmo Estado que eu, porém, também pela quantidade ainda maior de vezes que o futebol aparece no Dialética, percebe-se que há uma relação intensa e histórica comigo. 

REFERÊNCIA
RAMOS, Graciliano. Linhas Tortas: obra póstuma. 8.ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1980.

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