quarta-feira, 30 de abril de 2014

[Por Trás do Gol] Para além da riqueza da CBF

0 comentários
Há alguns dias, eu recebi e-mail do consultor de marketing e gestão esportiva Amir Somoggi, colunista do site Futebol Business, com uma apurada apresentação sobre as finanças da CBF, pegando o último decênio (2003 a 2013). Já na primeira página, a afirmação de que a Confederação Brasileira de Futebol teria se consolidado como a maior entidade esportiva do Brasil em termos financeiros.

Tirando a possível comparação com seus clubes afiliados, relacionar o dinheiro que rola com o futebol com o que percorre outros esportes no Brasil é desnecessário. De qualquer forma, o principal dado que é sugerido por Somoggi, já no corpo do e-mail, é que desde que este país foi escolhido como sede da Copa do Mundo FIFA 2014, o faturamento da entidade cresceu 277%, tendo uma evolução de 310% no período de 10 anos, demonstrando que estes 7 anos foram marcantes para isso.

Eu optei por esperar um pouco antes de comentar a pesquisa e afirmar coisas como "Copa vira ótimo negócio para a CBF". Ainda que sob a visão de um pesquisador em Comunicação, creio ser importante analisar toda a conjuntura por trás deste crescimento, para além da análise mais à vista dos números e de tirar conclusões que, tratando-se desta entidade, quase sempre são críticas fervorosas.

Para início de conversa, abaixo segue trecho do infográfico feito pelo jornal Gazeta do Povo sobre a receita da CBF neste período. Pode-se perceber que de 2003 a 2007, os valores pouco variam, indo de 110 a 120 milhões de reais, com crescimento enorme a partir de então, a ponto de chegar aos R$ 452 milhões do ano passado. Até 2007, o prejuízo foi de R$ 12 milhões, enquanto que de 2007 até 2013, o lucro foi de 383 milhões de reais. Diferença gritante, não?
Além da confirmação do Brasil como sede da Copa - e daquelas promessas de que não se gastaria dinheiro público com ela (nós lembramos bem...) -, 2007 é o ano que começa o novo contrato com a Nike, fornecedora de material esportivo. Nos primeiros dez anos, todos lembram bem que a empresa tinha direito a uma série de amistosos anuais para divulgar as marcas. No novo contrato, se não me engano, a quantidade de partidas foi diminuída, senão encerrada. A CBF passou a contar com outra empresa, agora do Emirados Árabes, para organizar o Tour Canarinho.

Neste sentido, a ISE - cujo contrato foi renovado pouco antes de Ricardo Teixeira deixar o cargo de presidente da CBF e ir descansar nos Estados Unidos -, é quem organiza, geralmente terceiriza, as partidas do Brasil fora do país. Além disso, parece que a Ambev também teria alguns jogos sob seu direito de escolha...

São 14 patrocinadores da CBF que, assim como a FIFA desde os tempos de João Havelange, adotou a multiplicação de patrocínios, com praticamente uma empresa por setor, de frango, passando por cartão de crédito e chegando aos refrigerantes e escola de idiomas. Este número só vem crescendo, especialmente nos últimos anos. A "crise" econômica mundial não gerou reflexos tão pesados no Brasil, sob política também para os grandes e transnacionais empresários, além disso, o período anterior foi de crescimento de lucros em várias áreas. De todos os patrocínios, só a Tam saiu, dando lugar à Gol. Dez desses patrocinadores são concorrentes dos que apoiam a FIFA.

Acredito ser óbvio o maior interesse em patrocinar a principal representação do esporte no Brasil com o maior evento do mundo sendo realizado por aqui. É uma atração natural, mas que perpassa também por outras questões. Do lado publicitário, pode-se pensar se vale a pena dividir pequenos espaços nas camisas de treino e nos painéis. Por enquanto, o valor da marca Seleção brasileira de futebol faz valer, e muito, ainda mais em período de Copa do Mundo FIFA nestas bandas! Ligar uma coisa a outra, desde que de forma coerente com o contexto, pode ocorrer, mas não de forma simplesmente denuncista - que creio não ser o caso do consultor, que fez um excelente e descritivo trabalho.

Ainda assim, o principal crescimento é dos direitos de transmissão. 1114% nos 10 anos, 950 só de 2007 para cá, com apenas uma Copa do Mundo no caminho - quando a FIFA mais lucra. Vou pegar como referência os dados sobre o Campeonato Brasileiro de Futebol, que em 2007 vive o fim da parceria Globo-Record, via Traffic, e a tentativa da emissora de Edir Macedo em tirar os principais torneios da líder de mercado - inclusive, teria oferecido mais pela Copa do Mundo FIFA, mas não ganhou porque a FIFA considerava que a escolha era da confederação local, que usou como justificativa a relação e a expertise da emissora dos Marinhos, que ganharam automaticamente as edições de 2018 e 2022, sem qualquer consulta. Isso inflacionou o mercado de direitos de transmissão no país.

Em 2003, para se ter uma ideia, o SBT ofereceu ao Clube dos 13, ainda que este sob contrato com as Organizações Globo - à época contrato com todas as mídias -, um valor mínimo de R$ 200 milhões para 2003, além de outros acréscimos com parcerias em loterias e programas estilo Roda a Roda. Após o final de todo o imbróglio, que envolveu até o CADE, em 2011, as Organizações acabaram pagando mais de R$ 1 bilhão pelo torneio. Um aumento também substancial no período e que deve ser ainda maior para 2015-2018, segundo as informações dos meios de comunicação, já negociados (ver mais sobre o caso na minha dissertação).

Só para registro, trago dois casos que demonstram crescimento puxado pelos direitos de transmissão. O primeiro é o do Corinthians, cujo fenômeno Ronaldo modificou a estrutura do marketing do clube, impulsionando receitas e equilibrando as contas do clube (dados do blog Olhar Crônico Esportivo, de Emerson Gonçalves, no Globoesporte.com)


O segundo caso é o da própria FIFA, que após o fracasso, em meio a corrupção e falência da empresa de marketing esportivo ISL em 2001, mudou a sua forma de negociação dos direitos de transmissão e vem conseguindo ganhar cada vez mais com isso. Se antes vendia por região, com cada país selecionando a sua melhor forma de disputa, passou a atuar por país e por mídia, amplificando as suas receitas com isso de forma gritante desde então.
Mas como Copa do Mundo FIFA só existe a cada quatro anos, é preciso ter outras receitas para manter o lucro bilionário anual da maior entidade paraestatal do mundo. E a turma de Blatter, Valcke e cia., fieis discípulos de João Havelange, aprenderam como se faz. Prova disso é  a relação do que gastam e do que ganham a cada quatro anos - em meio a muitas críticas aos Estados alheios.

O football association é marca exclusiva da entidade, por mais que nós torcedores fieis e apaixonados lutemos para demonstrar diariamente que não é só isso. Como diz um atropólogo pesquisador de futebol:

Pela volúpia com que atua no mercado de “bens simbólicos”, tendo valorizado exponencialmente seus produtos, seria apropriado pensar a FIFA como a gestora de uma join venture especializada na produção de eventos futebolísticos. Todavia, seu domínio é mais amplo, estendendo-se sobre o futebol de espetáculo (DAMO, Arlei Sander. Produção e consumo de megaeventos esportivos – apontamentos em perspectiva antropológica. Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo, v. 8, n. 21, p. 67-92, mar. 2011. p. 87).


Dados da FIFA também do blog Olhar Crônico Esportivo, de Emerson Gonçalves, no Globoesporte.com

Mas um detalhe muito interessante e bem observado é apontado por Somoggi na entrevista para a Gazeta do Povo: 


“Alguma coisa está fora de ordem. O que acontece no Brasil é o inverso do que acontece na Europa. A seleção é uma marca extremamente relevante para o cenário internacional, enquanto os nossos clubes não conseguem expressão”.

Na Espanha, fala-se ape­­nas de Barcelona e Real Ma­­drid; na Inglaterra, de Man­­chester City, de Chelsea... Na Alemanha, ocupa-se mais de Borussia e Bayern do que com a seleção”.
“Talvez a confederação tenha medo de fortalecer os clubes porque os veja como concorrentes. Eles têm de ver nesses números da CBF o potencial que existe no mercado para se desenvol­­verem e cobrar da confederação a melhor estratégia para o campeonato nacional”.


Enquanto eu relatei que os times a Série A tiveram acréscimo no que recebem, há clubes neste meio que recebem quase metade do último grupo com acordo plurianual com o maior grupo comunicacional do país. Na Série B então, a diferença é gritante. Ano passado, enquanto o Palmeiras recebeu R$ 75 milhões, os demais, com exceção do Sport, receberam menos de R$ 5 milhões. A CBF prega a independência dos clubes para negociarem, mas foi um dos elementos a brigar nos bastidores pela implosão do Clube dos 13 e responsável direto pelo fim da FBA, que representava os clubes da Série B, cujo contrato foi sumariamente encerrado,com os clubes calados.

Ver a CBF, com bem menos jogos a negociar, dando lucro todo ano enquanto seus afiliados sofrem para arranjar um patrocínio máster que dê conta é um problema. Ainda que o saneamento da entidade tenha sido a grande ação das mais de duas décadas de Ricardo Teixeira no comando dela - por mais problemas que pode ter gerado ao longo destes anos, alguns que se perpetuam. Por que não ensinar aos afiliados, que realmente movimentam o cotidiano do futebol, para além do evento a cada quatro anos?

Somoggi deu a dica e talvez este sim seja o principal ponto a se abordar no seu excelente e minucioso trabalho de avaliação das contas da entidade-mór do futebol brasileiro.

(Ah, quem quiser, eu posso repassar os dados por e-mail, assim como os contatos do consultor para os colegas de profissão).

domingo, 27 de abril de 2014

[Por Trás do Gol - Comentários] O Bom Senso FC e o fair play financeiro

0 comentários
Em tempos de mídias sociais, há alguns assuntos que, inesperadamente, podem tomar nossa atenção e nos instigar um comentário. Muitas vezes, não há tempo de retomar aquele assunto em particular, de forma mais pensada e melhor descrita. Por conta disso, e até para facilitar futuras buscas, resolvi publicar por aqui alguns comentários que ando fazendo por aí. Espero que não se restrinjam ao futebol, então podem esperar por uma participação mais assídua neste espaço.

E o primeiro tema a ser abordado nem é tão novo assim. Além de viver, infelizmente, um período de recuo, frente à grande atuação no final do ano passado. O Bom Senso FC discutiu no início de abril com representantes da CBF e da Comissão de Clubes a criação do "fair play financeiro" aqui no Brasil, de maneira a garantir o pagamento de salários dos jogadores.

A proposta (ver aqui) é criar uma entidade reguladora, composta por CBF, clubes e Governo federal, que trabalharia em conjunto com uma auditoria externa e poderia contar com R$ 3,5 milhões de investimento, inicialmente bancados pela Confederação.

A pergunta feita a mim era a seguinte: "Anderson Santos, qual o impacto que isso pode ter? Tem algum prognóstico ou arrisca?"


  • É algo que, se aprovado, vai demorar. A Europa entra nesse processo aos poucos e em breve - e com algumas tentativas de burlar o fair play financeiro com patrocínio de empresas dos próprios donos de clubes. Imagina aqui.
  • Anderson Santos Lá, mesmo com a proposta do fair play financeiro aprovada e andando, os jogadores paralisaram rodadas de La Liga e do Calcio, com apoio completo, inclusive com Puyol e Casillas na linha de frente da entrevista coletiva da associação dos jogadores. O Bom Senso F.C. representa todos os jogadores para ter um apoio nesse nível? Os jogadores no Brasil teriam coragem de fazer algo parecido?
  • Anderson Santos Fora que a postura do Marin é ouvir a todos, independente de serem críticos ou não - malufismo mode on. Daí a aplicar é outra coisa. Por fim, auditoria com participação do governo pode levar à interpretação de que há interferência estatal no futebol num futuro, o que é proibido pela FIFA"


Explicando, rapidamente, algumas coisas que citei. O fair play financeiro é um conceito aprovado pela UEFA  (veja mais no site) em setembro de 2009, cujos pontos principais são os seguintes:

- Introduzir mais disciplina e racionalidade nas finanças dos clubes de futebol;
- Diminuir a pressão sobre salários e verbas de transferências e limitar o efeito inflacionário;
- Encorajar os clubes a competir apenas com valores das suas receitas;
- Encorajar investimentos a longo prazo no futebol juvenil e em infraestruturas;
- Proteger a viabilidade a longo prazo do futebol europeu;
- Assegurar que os clubes resolvem os seus problemas financeiros a tempo e horas.
Um Comitê de Controle Financeiro foi criado em 2010 e segue avaliando a saúde financeira dos clubes por temporada, aumentando as obrigações a cada ano. Há um limite de 5 milhões de euros de prejuízo por temporada, mas podem superar este limite até 45 milhões no acumulado do período de análise, desde que os acionistas cubram o prejuízo. Mas há clubes importantes do cenário europeu que estão bem perto de sofrer sanções (ver aqui). Ainda assim, não há expectativa de exclusão de torneios europeus, especialmente pela força de clubes como PSG e City, apenas sanções.

O caso brasileiro é bem diferentes. Como costumo dizer, o futebol representa uma mentalidade arcaica, muito mais do que a da sociedade do país em que está constituída, repleta de preconceitos e maneiras de administrar que mais se confundem com sentimentalismo - e muitos se aproveitam disso. Os jogadores, com raras exceções geralmente citadas, não buscam a melhoria de suas condições de trabalho, mesmo após a Lei Pelé. Não à toa, o Bom Senso FC surgiu por fora da representação classista, as associações de jogadores por não haver sentimento de pertença e representatividade.

Toquei no assunto, vendo possibilidades e problemas lá no início, ainda em abril (ver aqui). E se mudou algo de lá para cá, além de reuniões com a cúpula do futebol brasileiro, o que mostra o intuito de revisão das normas, não de modificação radical, foi para pior, com o assunto saindo da pauta de jogadores - alguns deles saindo do país - e dos meios de comunicação. Assim, continuamos a ver times e atletas atuando por três ou quatro meses no ano e jogadores de grandes clubes sem receber até 3 meses de salário, limite para a saída "automática".

No âmbito gerencial, vimos Marco Polo Del Nero ser candidato único à presidência da CBF apesar das críticas à entidade nacional terem voltado com força nos últimos anos. Nem Sanchéz, nem Ronaldo, nem Carlos Alberto Torres, muito menos Noveletto. Não se conseguiu um nome a se apresentar, ao menos, como oposição numa eleição onde os eleitores são os presidentes de federações e dos clubes da Série A (apenas!).

Por fim, a presença do governo federal para realizar auditoria é algo que pode gerar inúmeros problemas. Quando da CPI Futebol/Nike, após a Copa de 1998, a FIFA ameaçou suspender o Brasil por 2 anos por conta de possível interferência estatal no football association, de sua propriedade. Além disso, a Constituição Federal do Brasil dá independência às associações. Assim, pensar uma presença estatal é algo que pode gerar inúmeros problemas futuros.

Visão pessimista? Talvez. É que sempre se espera mais para se chegar num futuro bem melhor.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

[Por Trás do Gol] As sensações perante o moderno e o “ultrapassado”

0 comentários
Na semana retrasada o Jornal Hoje exibiu uma série de reportagens sobre a presença da tecnologia no futebol, a partir de três aspectos: o uniforme, a modernização dos estádios e a transmissão televisiva. É claro que as reportagens do Abel Neto serviram para enaltecer todo o processo, não mostrando possíveis opiniões contrárias.

Mas não é sobre esta série a que me dedico neste texto. Curiosamente, a reportagem (ver aqui) que tratou das mudanças nos estádios usou como exemplos dois marcos do futebol mundial, o Maracanã e o Centenário, que eu costumo utilizar como exemplo da diferença que é ver um jogo nas tais novas arenas. 

Pude ir aos respectivos estádios em 2012 e em 2013, nunca estando no Maracanã antes desta última reforma. Recordo que pequenas mudanças foram realizadas antes no Mário Filho, especialmente para o Mundial de Clubes da FIFA de 2000 e para os Jogos Pan-Americanos de 2007 – gastando milhões de reais já nestes processos, prevendo-se mais gastos para as Olimpíadas daqui a dois anos.

Mas fui antes ao Centenário. Quando percebi que estaria em Montevidéu por conta de um evento científico, uma das minhas principais preocupações foi a de saber chegar ao estádio. Em maio de 2012, fazia a minha primeira viagem internacional e encontrava uma cidade que parece carregar o saudosismo por seus melhores tempos em sua aparência.

Fui visitar o estádio na manhã de uma sexta-feira cuja chuva se avizinhava. Situado num parque, com imagens da Coca-Cola em si, mas com a imponência que tanto imaginava quando o via na TV ou em revistas. Dentro, um museu simples, com várias recordações brasileiras. Claro que muitas da Copa de 1950, mas com um bom retrospecto de disputas e vitórias do Uruguai. A história de como um esporte faz um país com pouco mais de 3 milhões de habitantes pudesse ser bastante reconhecido mundialmente. Um museu simples, mas organizado.

A real sensação de estar no Centenário veio com a entrada na parte que dá acesso às arquibancadas, setor onde fica aquela gigante torre (Torre de los Homenajes). Fui subindo degrau por degrau, imaginando e sentido toda aquela aura (Benjamin que me desculpe) dos momentos iniciais. Rememorando que aquela construção surgira para comemorar o centenário do país com a primeira edição do que viria a se tornar o maior evento do mundo.

Subi até o último degrau possível e parei. Arquibancadas de concreto, misturadas a cadeiras na parte de baixo, à altura do gramado. Em cima, no primeiro ou último degrau, dependendo do ponto de vista, sentia-me vendo Uruguai e Argentina duelarem na primeira final de Copa do Mundo FIFA. Foi ali, sem dúvida alguma.

Em setembro do ano passado, mesmo passando em frente às obras do estádio nas viagens anteriores ao Rio de Janeiro, pude adentrar no Estádio Jornalista Mário Filho. Neste caso, algo ainda mais especial, já que assistiria a uma partida. Sentiria, ou não, o velho Maraca pulsar.

Quando passei pela entrada B, se não me engano – aquela que fique em frente à UERJ – e subi pela rampa, a história veio à minha memória. “Eu estou no Maracanã”. “Eu estou no Maracanã”. Quem é fascinado por futebol sabe ou deve imaginar o que isso significa. Além disso, eu sou fascinado pelo mundial de 1950. Se pudesse voltar um momento ao passado seria naquela tarde de 16 de julho de 1950. O tal do “silêncio de mais de 200 mil pessoas” que nenhum meio de comunicação foi capaz de registrar e que, imagino, caso tivesse transmissão completa da partida, seria difícil causar a real experiência de quem esteve ali.

Por mais que se tenha a possibilidade de acessar arquivos, o evento esportivo é único justamente porque ele necessita do ao vivo. Saber o que aconteceu tira um pouco, uma importante parte das sensações imediatas, das reações racionais ou irracionais que se têm de acordo com o envolvimento com o que se vê. Não descarto, é claro, como a minha sensação no Centenário comprova, que há outras memórias a serem resgatadas, e que a emoção volte sempre quando se vê, por exemplo, imagens de partidas marcantes para nossos clubes e seleções de adoração.

Entrando no estádio, ainda que do lado de (várias) organizadas diferentes do clube local, com ritos tradicionais misturados a apropriações de uma música de Sidney Magal e da Coca-Cola – olha ela aqui também – tudo era muito novo. Nunca estive numa dessas arenas, nesses novos estádios. 

Mesmo que ainda estivesse no Rio Grande do Sul quando dos primeiros jogos da Arena do Grêmio, não fui para lá. Vi alguns jogos no Olímpico, um no Beira-Rio em reformas, mas a minha alegria era ir para as canchas de interior. Pequenas, algumas até mal estruturadas, mas com o “futebol de antigamente pulsando” em jogos de níveis menores.

No Maraca, cadeiras confortáveis e de diferentes cores, reclamação e quase briga cadeiras ao lado quando alguém ficou em pé – isso perdurará enquanto o torcedor achar melhor sentar no degrau da escada ou, por nervosismo, ficar de pé –, um olhar no resto do estádio por várias vezes, até mesmo para tentar reconhecer algo, e perceber que aquilo era tão diferente, tão novo. Não senti estar num patrimônio histórico cultural futebolístico.

Poderia ser no Rio de Janeiro, em Londres, em Berlim, ou em qualquer outra parte do mundo. Excluindo o modo de torcer brasileiro e a fachada tombada, aquilo não me fez lembrar em momento algum que uma final de Copa do Mundo FIFA havia sido disputada ali há tanto tempo. Que vários e vários jogos clássicos, mesmo os que eu já acompanhei pela TV, foram ali. Tudo era novo.

Por mais saudosista que eu possa parecer, realmente não me veria exprimido com mais de 200 mil pessoas num mesmo espaço. Nem reclamo que as melhorias estruturais devam vir, mesmo que a modernidade cobre o seu preço para mais tranquilidade e conforto – ainda que discorde de preços aviltantes em jogos que o produto a ser visto não vale tanto. Mas conhecia ali o “novo Maracanã”, com grande arrependimento de não ter tido a possibilidade de sentir, como no Centenário, o futebol de antes. Aquele que não vivi, mas podia absorver enquanto apaixonado por este esporte desde tenra idade ou, como costumo dizer, que deve estar inscrito no meu DNA.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

As batalhas por direitos esportivos na França

0 comentários

Na sexta-feira (4/4), a Ligue de Football Professionell (LFP) que, dentre outras competições, comanda as duas primeiras divisões do Campeonato Francês, anunciou os vencedores dos direitos de transmissão para as edições de 2016 a 2020 dos principais campeonatos de futebol do país. Acontecimento este que representa o desfecho de uma verdadeira guerra entre dois grupos de comunicação, que recorreram a várias instâncias judiciais para resolverem os problemas que apareciam.

O marco inicial do combate entre o Canal +, que atua também na Espanha, e o catariano beIN Sports veio em dezembro de 2013, mas com o rúgbi. No dia 2, vazou a informação que o Canal + ofereceria 66 milhões de euros por temporada para transmitir o Top 14 para os torneios de 2014 a 2018. No dia seguinte, a Ligue National de Rugby (LNR) cassou o contrato com o canal franco-espanhol.

Aqui começa uma série de diferenças em relação ao que é praticado no Brasil. Por aqui, as empresas de comunicação, clubes e ligas – quando existam – podem entrar com ação apenas no Conselho Administrativo de Direito Econômico (Cade), para denunciar práticas anticompetitivas de alguma das partes. Ainda assim, como no caso das negociações dos direitos de transmissão do Brasileirão, que liquidou com a associação de clubes, não se apresenta como uma prática normal de mercado, carecendo de melhor entendimento sobre como deve ser levada adiante frente ao receio de represálias.

Acusação de manipular uma partida

O Canal + ameaçou e levou a LNR ao Tribunal de Grande Instância de Paris por ter aguardado o valor a ser oferecido e se beneficiar deste preço de reserva. Em janeiro, a liga de rúgbi paralisou as negociações por conta das ações judiciais. Mas no dia 14 de janeiro voltou atrás e anunciou a cessão dos direitos do Top 14 por cinco temporadas para o Canal +, a preço de 71 milhões de euros por ano. Imediatamente, o beIN Sports contestou as condições da negociação, mas nada sobre isso foi alterado até o presente momento.

Enquanto isso, a LFP se aproveitou da intensa disputa entre dois dos maiores transmissores de esportes no país para adiantar a licitação pelos seus campeonatos mais importantes. Ainda com dois anos de contrato com o Canal +, a liga do futebol indicou que abriria concorrência para as temporadas de 2016 a 2020 da Ligue 1 e da Ligue 2, esperando se beneficiar da briga e ganhar cerca de 200 milhões de euros a mais do que vinha recebendo – em meio aos resquícios da crise econômica na Europa.

Inicialmente, o Canal + entrou com ação clamando pelo direito de se beneficiar dos dois anos restantes de contrato. Além disso, pediu ao governo francês que não permitisse que a beIN Sports pudesse concorrer pelos direitos dos torneios por supostamente ter conflito de interesses com um dos clubes, o Paris Saint Germain. Enquanto o beIN Sports é oriundo de uma parceria entre a TV Al Jazira com o Turner Broadcasting System (do grupo Time Warner e que tem parceria com o canal Esporte Interativo no Brasil), o PSG é do Qatar Investment Authority.

Acusação curiosa, já que em meados dos anos 1990 foi uma parceria com o Canal + que fez com que o PSG pudesse contratar vários nomes de peso do futebol mundial, caso do brasileiro Raí, e aparecer no futebol europeu. Num período de grande disputa com o Olympique de Marseille, sob o comando de Bernard Tapie, que conquistaria a Copa dos Campeões da Europa em 1993 – mas que não apareceria na final do Mundial Interclubes daquele ano contra o São Paulo por ter sido excluído em torneios de primeira divisão acusado de manipular uma partida contra o Valenciennes.

Pedidos rejeitados

Em poucas semanas, o ministério dos Esportes arquiva o pedido e o processo segue. O clamor ao governo também é algo que não ocorre no Brasil, dado que as relações entre meios de comunicação e entes estatais se dão nos bastidores em prol da “imparcialidade” declarada dos grupos empresariais da área.

O beIN Sports passa a contra-atacar, buscando os direitos de outros esportes. Em 20 de fevereiro, anunciou a compra dos direitos de transmitir as próximas duas edições dos mundiais de handebol masculino e feminino, 2015 (Catar) e 2017 (França). Semanas depois, anunciou a compra dos direitos para a liga francesa do esporte, o D1, por cinco anos e a quatro milhões de euros por temporada.

No dia 6 de março, a LFP colocou à venda a Ligue 1 e a Ligue 2 um ano antes do esperado. Também diferente do Brasil, que prezava por contratos para diferentes mídias, há lotes específicos colocados em leilão. O Lote 1 fornece os dois melhores jogos por dia mais duas revistas semanais (Jour de Foot e CFC), sendo esperadas as melhores propostas qualitativas e financeiras. O Lote 2 dá direito a uma partida por dia, mais o Top 10. O Lote 3 dá direito à escolha entre as outras sete partidas por dia de rodada, sendo três em atraso (sexta às 20h45, sábado às 17h e domingo às 20h) e 12 jogos a serem escolhidos que podem ter cotransmissão. O Lote 4 é dedicado à transmissão em multiplex. O Lote 5 permite a veiculação de resumos quase ao vivo. E o Lote 6 é dedicado à venda de vídeos por demanda.

4 dias depois, o Canal + aciona o concorrente por suposta concorrência desleal, com perdas de 187 milhões de euros em assinantes para o beIN Sports, sendo solicitados 293 milhões de euros na ação judicial. No dia 16, contesta na Autoridade de Concorrência francesa o concurso para as divisões do campeonato francês, por “borrar a visibilidade e sua oferta para os assinantes”. Além de pedir a suspensão da concorrência no Tribunal de Grande Instância de Paris. Todos os pedidos foram rejeitados, tendo o ápice no dia 01 de abril, quando a Corte de apelação de Paris rejeitou últimos pedidos de adiamento da licitação.

As barreiras da Rede Globo

No dia 23, foi a vez da Orange e da Eurosport protestarem pela antecipação da concorrência, especialmente, no caso da Orange, por não constar a abertura de negociação para a veiculação em tablets e celulares. Em 2 de abril, data marcada para recebimento das propostas, cinco grupos participaram da concorrência, apesar das tentativas judiciais: Canal +, beIN Sports, Eurosport, Orange e o grupo L’Equipe.

Compara-se com o caso brasileiro que, em meio a indicações por parte do Cade de como deveria ser a concorrência pelos direitos de transmissão em TV aberta do campeonato nacional, a Rede Globo desistiu de participar do certame, optando por negociar em separado com os clubes. O que levou à desistência de concorrentes como Record e SBT.

O anúncio da sexta-feira foi que a LFP conseguiu 748 milhões de euros por temporada, sendo 726,5 para a Ligue 1 e 22 para a Ligue 2. O Canal + passou a pagar mais, sendo o grande vencedor da disputa. Serão 265 milhões de euros pelo lote 1 da Ligue 1 e 275 milhões pelo lote 2, no total de 540 milhões de euros por temporada. Já o beIN Sports pagará 160 milhões de euros pelo lote 3, e um total de 26,5 milhões de euros pelos lotes 4, 5 e 6, além 12 milhões de euros pelo lote 1 da Ligue 2, que teve seu segundo lote adquirido pelo Canal + por 10 milhões de euros. O Eurosports, que transmitia a Ligue 2, não poderá transmitir o torneio a partir de 2016.

Ao contrário daqui, na França a associação de clubes não só seguirá organizando o torneio, como se aproveitou da disputa no mercado de TV para ganhar bem mais em meio aos resquícios de crise na Europa. Como discutido no que tange à concorrência, neste caso de produto que necessita de mais de dois produtores (um clube tem que enfrentar outro), o melhor é colocá-lo à venda de forma coletiva. Além disso, o atual detentor tentou em várias instâncias judiciais adiar a concorrência, mas não conseguiu, e, entretanto, não deixou de participar do processo.

Estas diferenças também refletem a diferença no posicionamento jurídico em termos de concorrência no Brasil para esses casos, ainda que o desfecho de 2010 seja especialmente emblemático e importante para nós por ser inédito. A Europa debate este tema em suas instâncias de concorrência desde a década de 1990, quando as empresas privadas que atuam no mercado de comunicação após a abertura na década anterior apostam nos esportes como atrativos de audiência, aumentando os rendimentos para estes.

Também não se tem uma concorrência real no mercado brasileiro para isto, frente às fortes barreiras estabelecidas pela líder Rede Globo para diferentes mídias, assim como a concorrência com o capital estrangeiro não se apresentar em condições financeiras reais – que indicaria prejuízo para o ente local. No caso da TV aberta, principal nicho publicitário, não há ente estrangeiro e nem é possível. A empresa não pode ter mais de 30% do seu capital de fora do país.

***
Texto originalmente publicado no Observatório da Imprensa.