sábado, 5 de janeiro de 2019

Spotlight e as crises

Ia dizer que duas coisas me incomodam bastante nos últimos tempos, mas são muitas mais, o contexto brasileiro não ajuda mesmo. Assisti ontem com a minha companheira a "Spotlight: Segredos Revelados", que me fez lembrar ainda mais das coisas que me incomodam.

Para além de um vencedor de Oscar de melhor filme, é interessante saber que é baseado num fato real: a investigação sobre os diversos casos de pedofilia na Igreja Católica, que começam nos Estados Unidos e depois seguem para outras partes do mundo. Enquanto jornalista, em meio a uma crise de décadas causada pela evolução das tecnologias digitais de informação e comunicação e a deficiência na preparação para o jornalismo investigativo, com o entretenimento tomando conta do ofício em troca de cliques, ver uma grande reportagem dessas dá um alento. É possível fazer jornalismo "de verdade", mas sob quais condições?

A equipe Spotlight do Boston Globe é dedicada apenas ao jornalismo investigativo, mas em 2001 já sob pressão da diminuição da circulação e com a sombra de cortes nas equipes. Exigir bom jornalismo também deveria gerar a exigência de condições de trabalho. Confesso que vejo como algo difícil na formação atual e no que se exige nas empresas do Jornalismo, contando com equipes reduzidas e produção mais quantitativa que qualitativa, ter muito espaço para reportagens assim. O novo jornalista deve estar preparado para trabalhar em todas as mídias, com redações "convergentes", recebendo salário de um para trabalhar em 3 ou quatro meios de comunicação.

Mas há exceções no Brasil, destaco três agências dedicadas ao jornalismo investigativo: Agência Pública (https://apublica.org/), Sportlight (http://agenciasportlight.com.br/) e The Intercept Brasil (https://theintercept.com/brasil/). Além delas, destaco a Revista Piauí (https://piaui.folha.uol.com.br/), com podcasts muito bons ("Foro de Teresina" e "Maria Vai com as Outras"); e El País Brasil (https://brasil.elpais.com/), com colunistas como Eliane Brum e Xico Sá - apesar de certa reportagem sobre o CSA. Cada caso geraria um bom trabalho sobre como conseguem se manter com certa autonomia no conteúdo, pegando como eles conseguem se manter - as reclamações de setores "progressistas" de "a piauí é de banqueiros" sempre aparece, por exemplo.

A outra coisa que me revoltou ao ver o filme é lembrar da discussão sobre "valores morais da família". É chover no molhado dizer isso para quem pode ler este texto, mas a maior quantidade de casos de estupro de vulneráveis ocorre dentro de casa, e isso é estatístico, não doutrinação (ao contrário dos que negam até números conhecido). Vem de pessoas de confiança, o que normalmente faz com que as crianças tenham medo de denunciar ou não tenham a voz escutada.

Caso semelhante ao relatado no filme. Num dos momentos, a repórter pergunta o que a mãe fez ao padre e o jovem responde "biscoitos", enquanto outro afirma que em locais menores o padre é visto como se Deus tivesse ali para as pessoas. Aqui não quero centrar críticas à Igreja Católica, vide até mesmo o caso recente ligado à "cura espiritual", em que até apresentador de telejornal fez questão de dar opinião de que "estava muito estranho", ao tratar da quantidade de denúncias que apareciam.

Irrita-me muito o fato de as pessoas se aproveitarem das fraquezas psicológicas de outrem para se beneficiar de algo. E aí vai desde casos de aproximação de amizade, algo que comentava em casa na tarde de ontem; até casos de assédio e outras formas de violência. Há toda uma indústria que se mobiliza em torno disso. E aqui sim há uma mobilização gigante para acreditar piamente, pois não há link na internet ou opinião de especialista que ajude.

O filme é ainda mais interessante no momento em que o diretor do jornal pede para sair de um caso específico e denunciar o sistema que permita que coisas daquele jeito, de décadas, acontecessem. Em outra coincidência, ouvi num telejornal ainda ontem que o papa Francisco disse que os casos de pedofilia teriam diminuído a credibilidade da instituição, que do segundo semestre do ano passado para cá tem colocado especialistas no tema na alta cúpula. Mas, 18 anos depois de Spotlight. Outro porém é a denúncia que Francisco teria encoberto algumas denúncias que surgiram (https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/26/internacional/1535270300_057389.html).

A forma como isso se dá mostra que séculos depois da Idade Média, a Igreja Católica permanece como uma instituição muito poderosa. A diferença, ao menos no caso brasileiro, é que a bancada religiosa tem muita força e distribuição por outras matizes religiosas ligadas ao protestantismo.

Por fim, mas não menos importante, vale resgatar ainda que neste caso tivemos a denúncia de três padres em Arapiraca-AL (última notícia sobre o caso que encontrei: http://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2017/07/tribunal-de-justica-mantem-condenacao-a-padres-de-arapiraca-_36273.php), não à toa o nome da cidade aparecem nos créditos do filme, pronto em 2015. A investigação foi feita por Roberto Cabrini, do SBT. 

Lembrei ainda que ano passado houve ato ecumênico durante o "Ele Não" de Maceió, e uma pessoa denunciou o padre que participou (https://tribunahoje.com/noticias/cidades/2018/10/26/padre-alagoano-sofre-intimidacao-por-participar-do-ato-ele-nao/) para a Arquidiocese, acusando-o de proselitismo político. O padre lembrou da invasão à CNBB por partidários do atual presidente.

Ainda que eu tenha posicionamento sobre religião, deixo claro que não sou de tentar estimular que as pessoas tenham o mesmo que eu. Creio que a fé em algo é importante para diversos momentos, mas que é ainda mais relevante que as pessoas estejam bem e conscientes sobre este processo. O ponto de vista crítico vale em quaisquer situações. Especialmente para perceber os problemas nos espaços que se ocupa, retirando qualquer local em que discussões ou críticas não possam ocorrer. Afinal, "degeneração moral" ou "doutrinação ideológica" surgem mais de lugares "tradicionais" e "confiáveis" do que daqueles que sempre foram alvo. Afinal, a quem interessa uma educação que estimule a autonomia do pensamento crítico?

Nenhum comentário:

Postar um comentário