domingo, 27 de janeiro de 2013

"Mas por que o futebol?"

Estrangeirismo, roupa de empréstimo que não nos serve, costume intruso, coisa estrangeira e exótica, enfim, "um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês". É assim que Graciliano Ramos, sob pseudônimo J. Calisto, define o futebol em coluna publicada em abril de 1921 no jornal "O Índio", de Palmeira dos Índios-AL, texto republicado em Linhas Tortas. E agora?

Quem acompanha os meus textos neste blog deve ter percebido - e espero que sim! - que nutro uma admiração pelo conterrâneo Graciliano, que é o autor que mais li livros e que mais escrevi sobre neste humilde espaço. Ao mesmo tempo, tenho uma relação pregressa com o futebol, de amor mesmo, de forma a defendê-lo de quaisquer comentários apocalípticos, seja na Academia ou no cotidiano, com as pessoas que não entendem a paixão que ele gera.

Confesso que há muito procurava este texto, o décimo-primeiro da primeira parte de Linhas Tortas. E aí eu já reli e sigo a pensar como eu posso tratar dos comentários do Mestre Graça, afinal, o mês até que está durante muito né? São 117 anos desde aquela partida organizada e praticada por Charles Miller em São Paulo e, de inserção mais profunda na sociedade brasileira já são, no mínimo, oito décadas.

Por um lado, eu poderia seguir a provocá-lo. Responder os comentários sobre a falta de físico dos brasileiros para esportes que mais o exigissem ou a sua expansão para os mais diversos terrenos, para além das regiões litorâneas, etc. Por outro, poderia desenvolver um mea culpa que jamais Graciliano faria, utilizando de alguns dos argumentos apontados por ele quando, em determinado trecho da crônica, afirma que algumas práticas exóticas podem ser assimiladas por nós.

Não sei bem como vai ser isso, mas que não seja nenhuma das alternativas anteriores. Quer dizer, que tenha um pouco das duas juntas e mais outras. Até mesmo porque de só ter duas alternativas já basta a moeda nossa de cada dia.

CULTIVEM A RASTEIRA!
Comentei no texto sobre Linhas Tortas que as crônicas de Graciliano refletiam uma preocupação com aspectos nacionais, porém, não no sentido elitista, mas sim para incentivar as identidades regionais de um país do tamanho deste. Aqui não é diferente. A todo o momento o autor natural de Quebrangulo escreve que os nossos jovens deveriam deixar as estrangeirices de lado e se preocupar com as coisas locais. Segundo ele:

“Temos esportes, alguns propriamente nossos, batizados patrioticamente com bons nomes em língua de preto, de cunho regional, mas por desgraça estão abandonados pela débil mocidade de hoje” (80).

Não que Graciliano fosse contra apropriações de coisas exóticas. Lembro que estávamos às vésperas do movimento antropofágico na cultura nacional, a ser liderado por Oswald de Andrade em São Paulo, coincidência ou não. Ainda assim, ele estava situado no grupo de literatos era contrário à "popularização" dele, por mais que não tenha sido por motivos de mantê-lo sob as asas das classes mais abastadas da sociedade. Diferença importante já que aquele período é marcado pela luta pelo profissionalismo neste esporte, o que significava tratar os jogadores como trabalhadores (mercadoria) e, consequentemente, a amplitude de sua prática para pessoas de classes sociais desfavorecidas. O público, comprando ingressos, já poderia ser formado para além de membros da elite.

Ele mesmo coloca que caso a coisa exótica seja assimilada entre nós, ela é mito bem-vinda, e tão logo "arranjemos ela um filho híbrido que possa viver cá em casa". Para alguns, é isto que acabamos por fazer com o futebol, pegamos as práticas bretãs, mesclamos com a ginga e o drible de origem africana e acabamos criando um "estilo de jogo", ou, ao menos, a ideia/tradição disso, de forma que o football viraria futebol, o corner, escanteio, o goal, gol, e assim por diante.

Mas Graciliano achava que o futebol não preencheria necessidade alguma no Brasil, não haveria lacuna a ser por ele ocupada. Primeiro, porque já havia um jogo parecido. Segundo, porque enfrentaria a resistência de locais com pessoas fisicamente ineptas para práticas que exigissem do físico, seria necessária uma transformação da "banha em fibra". Assim:

“O do futebol não preenche coisa nenhuma, pois já temos a muito conhecida bola de palha de milho, que nossos amadores mambembes jogam com uma perícia que deixaria o mais experimentado sportman britânico de queixo caído” (82).

Não importava que ele já estivesse intrincado nas grandes cidades, litorâneas, pois enquanto "as cidades regurgitam de gente de outras raças ou que pretende ser de outras raças; não somos [no sertão] mais ou menos botocudos, com laivos de sangue cabinda ou galego" (82). Não se adaptaria às "boas paragens de cangaço".

Assim, deveríamos praticar jogos nacionais. E se é para fugir ao "natural" de sermos "em geral, franzinos, mirrados, fraquinhos, de uma pobreza de músculos lastimável", deveríamos recorrer aos esportes regionais: "o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada e, melhor que tudo, o camba-pé, a rasteira" (82).

Sigo citando a ironia e o sarcasmo do autor sobre os problemas sociais dos recantos do país. Ele caracteriza a falta de preocupação, mesmo com o esporte bretão, com a formação do cérebro, que fica em detrimento à constituição muscular. Mas, principalmente, a análise sobre a sociedade brasileira aparece ao caracterizar a rasteira como esporte nacional. Não apenas a rasteira física, mas no sentido metafórico do termo. A vida prática mostra isso. Seja "no comércio, na indústria, nas letras e nas artes, no jornalismo, no teatro, nas cavações, a rasteira triunfa" (83).

Dedicar-se à rasteira, no final das contas, significa mais dedicar-se à formação do cérebro, ou da "esperteza", muito mais importante naqueles dias, e ainda hoje:

"E se algum de vocês tiver vocação para a política, então sim, é a certeza plena de vencer com auxílio dela. É aí que ela culmina. Não há político que a não pratique. Desde S. Exa. o senhor presidente da República até o mais pançudo e beócio coronel da roça, desses que usam sapatos de trança, bochechas moles e espadagão da Guarda Nacional, todos os salvadores da pátria têm a habilidade de arrastar o pé no momento oportuno" (83).


Mesmo o esporte que trouxe um excelente resultado para o Brasil, o tiro, que deu a nossa primeira medalha de ouro em Jogos Olímpicos, na Antuérpia (Bélgica), em 1920, com Guilherme Paraense, seria bem mais proveitosa a disputa com "espingarda umbiguda, emboscado atrás de um pau" (82). Ou seja, o problema dele não era com o futebol, que recebia maior destaque por ganhar cada vez maior destaque nas discussões públicas brasileiras, mas que devíamos exaltar mais as coisas brasileiras - por piores que fossem.


E DEPOIS?
Graciliano Ramos viveu até 1953, portanto, conseguiu acompanhar momentos importantes de delimitação do futebol como um esporte a fazer parte da construção de uma identidade nacional. Em 1938, sob o comando de Leônidas da Silva numa primeira seleção "profissional", o Brasil passaria a ser conhecido no mundo inteiro com o 3º lugar na Copa realizada na França.

Em outras duas crônicas, publicadas na segunda parte de Linhas Tortas, volta a aparecer o futebol, agora sem qualquer ressentimento ou crítica, já incluso no debate cotidiano nacional, como neste trecho de "Monólogo numa fila de ônibus", publicada em 15 de julho de 1945:

“Temos o futebol, sim senhor, e temos o cinema. Temos também a esperança do carnaval. No futebol admiramos Leônidas e Perácio, se é que esses dois heróis permanecem no cartaz. No carnaval aplaudimos o samba, nacionalmente” (240).


Antes mesmo disso, em Caetés, o seu primeiro livro, publicado ainda em 1933 - que eu estou acabando de ler e em breve comento por aqui -, Graciliano cita o futebol, ainda que como crítica à intenção de retomar a sociedade de esportes da cidade de Palmeira dos Índios, incluída aí à volta da prática de futebol no campo no lugar do plantio da mandioca e do algodão, que passou a ocupar seu espaço. Porém, isso se dá através da personagem beata, quase assexuada, da história, D. Engrácia:

"- Faz mal, opinou D. Engrácia. Isso assim está melhor do que cheio de vadios trocando pontapés.
"- Decerto, concordou a Teixeira, incorrigível. Antigamente não havia disso" (151).

Não lembro se este esporte torna a aparecer em outros livros de Graciliano Ramos, mas creio ser uma disputa superada já na década de 1930 de o futebol ser apropriado e reconstruído no Brasil, à "nossa maneira", digamos assim, mais do que um exemplo de imposição cultural imperialista - ou de uma prática de lazer restrita aos membros da elite socioeconômica do país. 

Depois disso ainda viria a Copa do Mundo realizada no Brasil, em 1950, e confesso que tenho bastante curiosidade para saber o que Graciliano achou de tudo aquilo. Se é que ele chegou a se preocupar com o assunto, mesmo morando no Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS
RAMOS, Graciliano. Caetés. 18.ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1982.

RAMOS, Graciliano. Monólogo numa fila de ônibus. In: _____. Linhas Tortas: obra póstuma. 8.ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1980. p. 240-241.

RAMOS, Graciliano. Traços a Esmo - XI. In: _____. Linhas Tortas: obra póstuma. 8.ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1980. p. 79-83. (Versão editada aqui)

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