quinta-feira, 11 de junho de 2015

A estatização da exibição dos jogos de futebol

Devido aos escândalos envolvendo dirigentes do futebol mundial, graças especialmente ao recebimento de propinas para a cessão de direitos de exibição de eventos, marketing ou organização de torneios no mundo, muitos blogueiros e jornalistas passaram a crer que a Rede Globo de Televisão, maior detentora destes direitos no Brasil, possa ser afetada mais cedo ou mais tarde pelas investigações do FBI.

Remete-se ainda ao caso da multa que o Grupo Globo teve de pagar por montar um esquema financeiro para não declarar totalmente o valor referente à compra dos direitos de transmissão das edições de 2002 e 2006 da Copa do Mundo Fifa. Os quase R$ 200 milhões “sonegados” da transação viraram anos depois mais de meio bilhão de reais de multa, com direito a sumiço do processo na Receita Federal. Algo que só veio à tona graças ao blog O Cafezinho, de Miguel do Rosário, em 2013 – antes dele, Andrew Jennings, no livro Jogo Sujo, cita em determinado momento que o dinheiro pago pela Globo para o Mundial de 2002 não apareceu na conta da ISL, empresa de marketing esportivo responsável pelas marcas da Fifa e que faliu em 2001.

Aproveita-se o momento para clamar por uma estatização dos direitos de transmissão dos eventos de futebol no Brasil, somando-se ao coro de combate ao monopólio da informação, que gera um controle sobre a própria organização do futebol no Brasil – capaz de colocar jogos aos sábados às 22h por conta de um simples amistoso da seleção da CBF, como no último final de semana.

A ideia de quem defende este processo é que a TV Brasil, do complexo público-estatal Empresa Brasil de Comunicação (EBC), deveria adquirir os direitos de exibição ao menos do Campeonato Brasileiro de Futebol, como fez a TV Pública (Canal 7) da Argentina em 2009.

Os recursos da TV estatal

Fiz a minha dissertação de mestrado sobre a constituição do que eu denominei como um “monopólio de direito de transmitir”. Lá apresento o histórico das transmissões e afirmo que o modelo pós-2011, de negociação por clube, é o pior possível para este negócio. Digo isto para afirmar que, na atual conjuntura, não seria possível à EBC adquirir estes direitos. O que deveríamos priorizar no debate é a constituição de regras mais claras e um legítimo processo concorrencial, como foi desenvolvido na Europa, após ações em órgãos de fiscalização da livre concorrência sobre este programa midiático.

Explicando. Defendi em outros momentos neste mesmo Observatório a importância da TV Brasil transmitir futebol, no caso a Série C, apesar de possíveis gastos com este produto. Para este ano, a emissora virou sublicenciada de eventos esportivos da Fifa, transmitindo no momento os Mundiais sub-20 e Feminino, além do sub-17 e do Mundial de Futebol de Areia, pelos quais teria pago US$ 250 mil à Rede Globo, que pretende transmiti-los apenas em seu canal de TV fechada. Além disso, a parceira tradicional, Band, vive uma crise econômica que já a fez evitar a Copa do Brasil do ano passado e demitir vários funcionários em 2015, o que também abriu espaço para outra emissora.

Repito o que disse há alguns anos: o futebol é um produto importante por sua capacidade de atrair público. Por mais que a audiência venha caindo, o torcedor fiel e apaixonado por seu time e/ou por este esporte seguirá acompanhando. Para uma emissora nova, caminhando para sete anos de existência, é fundamental para se fazer conhecer – afinal, quantas vezes vemos e ouvimos alguém sugerir assistir a algo nela? – e atrair público para outros programas.

Mas chegar a adquirir o Brasileirão com exclusividade, como algumas pessoas vêm defendendo, é demais para uma emissora que tem como receita anual R$ 500 milhões. Esse valor total não daria para cobrir a oferta da Rede TV! na licitação frustrada de 2011, que era de R$ 514 milhões. Para se manter como “dono” dos direitos do torneio, o Grupo Globo deve estar desembolsando quase o triplo disso por ano. Assim, mesmo considerando que um grupo de empresas “apoiadoras” viesse junto com o pacote – especialmente se os recursos das grandes estatais fossem mais aplicados na TV estatal –, poderia ser um passo muito grande para o tamanho das pernas da EBC.

A Ley de Medios argentina

Por um simples cálculo, percebemos que seria impossível hoje que a EBC comprasse esses direitos. Não pretendemos entrar aqui na discussão sobre certo receio governamental em criar uma concorrente real no mercado aberto do audiovisual, apenas destacar também que a realidade local está bem distante do que foi visto na Argentina.

A compra pelo governo veio num momento em que os clubes estavam (e ainda estão) bem piores financeiramente que os nossos, recebendo valores bem abaixo do que os pago aqui no Brasil. Era de interesses dos clubes e da Asociación del Fútbol Argentino (AFA) (sob a presidência de Júlio Grondona, que assumira a direção da entidade ainda sob ditadura militar) mudar o contrato das mãos da Torneos y Competencias (TyC).

A TyC é uma sociedade que tem o Grupo Clarín como um dos acionistas, este que se tornou um inimigo da família Kirchner apenas a partir do mandato de Cristina como presidenta – supostamente por divergências em sociedades de mídia. Apesar disso, mesmo sem os direitos de exibição, a empresa foi contratada enquanto equipe de transmissão. Foi um casamento dos interesses econômicos dos clubes com os políticos da gestão, algo a que ainda não se chegou no Brasil, ao menos não no extremo de lá.

Em 2013, publiquei um artigo em que trago o que identifiquei de leis e regulamentações sobre o futebol no Brasil, especialmente sua relação com a mídia. Ao final destaco o que mudou com a Ley de Medios argentina – esta oriunda de outro processo, com maior exigência e participação social, ainda que vindo no rastro das divergências entre os Kirchner e o Clarín.

Direitos de transmissão na Argentina

Aponto inicialmente uma questão importante no que tange à questão dos direitos de transmissão de eventos esportivos e o livre acesso à assistência:

“[…] dentre os artigos do Capítulo VII, que trata do Direito ao acesso aos conteúdos de interesse relevante, o Artigo 77 garante o acesso universal, através dos serviços de comunicação audiovisual, dentre outros, ‘aos acontecimentos desportivos, de encontros futebolísticos ou outro gênero ou especialidade’ […]. A definição dos eventos desportivos na lei é para evitar que se tenha que pagar para ver a transmissão de jogos de futebol, forma de entretenimento de bastante relevância” (SANTOS, 2013, p. 45).

Uma grande questão é garantir, como em alguns momentos não houve no Brasil, que torneios importantes tenham transmissão em TV aberta. Aí sim, se não houver interesse da emissora que detém os direitos, que esta exibição possa ser feita por quem queira, não prejudicando o público. Vale lembrar que muitos eventos esportivos e programas midiáticos são adquiridos simplesmente para tirá-los das mãos de concorrentes – foi com esse intuito que a Globo tirou os torneios UEFA das mãos da Record, transmitindo nos primeiros anos apenas a partir das semifinais e só a UEFA Champions League.

A mudança atende ao outro ponto que destaco:

“Já o Artigo 80 trata da cessão e do acesso à transmissão. O exercício de direitos exclusivos de emissão deve ser justo, razoável e não discriminatório, de forma que o direito ao acesso universal gratuito seja garantido e que não se afete a estabilidade financeira e a independência dos clubes” (SANTOS, 2013, p. 46).

Aqui, sim, há um ponto discutível para o caso brasileiro: até que ponto este modelo de negociação dos recursos do broadcasting não tornaram os clubes dependentes do grupo comunicacional que os adquire? O que gera outra questão, mais difícil de responder: Como descobrir de forma jurídica se a independência de uma associação/clube, garantida pela Constituição, está sendo ferida por outra empresa?

Para finalizar, uma problemática ainda mais importante, que infelizmente mostra certo desconhecimento sobre o caso argentino. Lembro que os jogos do Campeonato Argentino não eram transmitidos em TV aberta – apenas um resumo dos gols após o final da rodada, ficando as partidas restritas à TV fechada. A TV Pública passou a transmitir o torneio em TV aberta, inicialmente todas as partidas, mas o sinal poderia e pode ser retransmitido por outras emissoras, desde que paguem uma taxa de sublicenciamento proporcional à sua audiência. É importante destacar que lá os direitos não são exclusivos, pois isso só poderia gerar uma troca de dependência por outra sobre o acesso possível ao telespectador.

Os cuidados a serem tidos com a proposta

De problema mais agravante, além da dependência financeira de uma administração quase sempre em crise – devido às práticas neoliberais que seguiram a partir da ditadura militar –, é que as outras emissoras são obrigadas a transmitir conforme o que é repassado, com todas as propagandas se referindo a ações do governo central. Quer dizer, pode-se pagar bem menos para retransmitir, mas é impossível vender os espaços de merchandising internos, o que freia as possibilidades de as concorrentes adquirirem recursos com o programa.

Numa comparação simples, mas “oposta” politicamente à EBC, pensemos que a TV Cultura, num arroubo surpreendente de investimento do PSDB em algo hoje misto, mas com grande contribuição do Estado, resolvesse tirar da Globo os direitos do Campeonato Paulista – que estarão em discussão em breve, pois o acordo acabou em 2015 – e os usasse para divulgar apenas ações do governo Alckmin, suposto futuro candidato a presidente da República pelo partido. Será que a opinião pela estatização seria a mesma? Provavelmente, como ocorre na Argentina, teríamos mais um exemplo de utilização do futebol como instrumento político-eleitoral.

Vale lembrar que a Sabesp, empresa responsável pelo esgotamento sanitário e distribuição de água – esta não coincidentemente em crise –, além de se tornar mista nos governos do PSDB, serviu como instrumento de propaganda antes de o então governador José Serra entrar na candidatura a presidente da República em 2010, com publicidade nacional especialmente para eventos esportivos mostrados no Esporte Espetacular. Quer dizer, não seria impossível a suposição comentada no parágrafo anterior.

Assim, necessitamos ter muito cuidado no que propomos como algo voltado aos interesses da população para que isso não pareça revanchismo. Nas condições dadas há questões muito mais simples a questionar, especialmente num país em que o mercado de comunicação é praticado quase que sem qualquer regulação. Uma delas é o fortalecimento de um grupo comunicacional efetivamente público, que não mude de acordo com a gestão estatal, algo que pode alterar o perfil do que é oferecido à população.

Referências bibliográficas

SANTOS, Anderson David Gomes dos. A consolidação de um monopólio de decisões: a Rede Globo e a transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol. 271 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, São Leopoldo, RS, 2013b.

SANTOS, Anderson David Gomes dos. Políticas públicas para transmissão de esportes: análise de dispositivos legais sobre o desporto e a comunicação. Revista Brasileira de Políticas de Comunicação, Brasília, nº 4, p. 35-49, jul.-dez. 2013.

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Texto publicado na edição n. 854 do Observatório da Imprensa.

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