quarta-feira, 30 de abril de 2014

[Por Trás do Gol] Para além da riqueza da CBF

Há alguns dias, eu recebi e-mail do consultor de marketing e gestão esportiva Amir Somoggi, colunista do site Futebol Business, com uma apurada apresentação sobre as finanças da CBF, pegando o último decênio (2003 a 2013). Já na primeira página, a afirmação de que a Confederação Brasileira de Futebol teria se consolidado como a maior entidade esportiva do Brasil em termos financeiros.

Tirando a possível comparação com seus clubes afiliados, relacionar o dinheiro que rola com o futebol com o que percorre outros esportes no Brasil é desnecessário. De qualquer forma, o principal dado que é sugerido por Somoggi, já no corpo do e-mail, é que desde que este país foi escolhido como sede da Copa do Mundo FIFA 2014, o faturamento da entidade cresceu 277%, tendo uma evolução de 310% no período de 10 anos, demonstrando que estes 7 anos foram marcantes para isso.

Eu optei por esperar um pouco antes de comentar a pesquisa e afirmar coisas como "Copa vira ótimo negócio para a CBF". Ainda que sob a visão de um pesquisador em Comunicação, creio ser importante analisar toda a conjuntura por trás deste crescimento, para além da análise mais à vista dos números e de tirar conclusões que, tratando-se desta entidade, quase sempre são críticas fervorosas.

Para início de conversa, abaixo segue trecho do infográfico feito pelo jornal Gazeta do Povo sobre a receita da CBF neste período. Pode-se perceber que de 2003 a 2007, os valores pouco variam, indo de 110 a 120 milhões de reais, com crescimento enorme a partir de então, a ponto de chegar aos R$ 452 milhões do ano passado. Até 2007, o prejuízo foi de R$ 12 milhões, enquanto que de 2007 até 2013, o lucro foi de 383 milhões de reais. Diferença gritante, não?
Além da confirmação do Brasil como sede da Copa - e daquelas promessas de que não se gastaria dinheiro público com ela (nós lembramos bem...) -, 2007 é o ano que começa o novo contrato com a Nike, fornecedora de material esportivo. Nos primeiros dez anos, todos lembram bem que a empresa tinha direito a uma série de amistosos anuais para divulgar as marcas. No novo contrato, se não me engano, a quantidade de partidas foi diminuída, senão encerrada. A CBF passou a contar com outra empresa, agora do Emirados Árabes, para organizar o Tour Canarinho.

Neste sentido, a ISE - cujo contrato foi renovado pouco antes de Ricardo Teixeira deixar o cargo de presidente da CBF e ir descansar nos Estados Unidos -, é quem organiza, geralmente terceiriza, as partidas do Brasil fora do país. Além disso, parece que a Ambev também teria alguns jogos sob seu direito de escolha...

São 14 patrocinadores da CBF que, assim como a FIFA desde os tempos de João Havelange, adotou a multiplicação de patrocínios, com praticamente uma empresa por setor, de frango, passando por cartão de crédito e chegando aos refrigerantes e escola de idiomas. Este número só vem crescendo, especialmente nos últimos anos. A "crise" econômica mundial não gerou reflexos tão pesados no Brasil, sob política também para os grandes e transnacionais empresários, além disso, o período anterior foi de crescimento de lucros em várias áreas. De todos os patrocínios, só a Tam saiu, dando lugar à Gol. Dez desses patrocinadores são concorrentes dos que apoiam a FIFA.

Acredito ser óbvio o maior interesse em patrocinar a principal representação do esporte no Brasil com o maior evento do mundo sendo realizado por aqui. É uma atração natural, mas que perpassa também por outras questões. Do lado publicitário, pode-se pensar se vale a pena dividir pequenos espaços nas camisas de treino e nos painéis. Por enquanto, o valor da marca Seleção brasileira de futebol faz valer, e muito, ainda mais em período de Copa do Mundo FIFA nestas bandas! Ligar uma coisa a outra, desde que de forma coerente com o contexto, pode ocorrer, mas não de forma simplesmente denuncista - que creio não ser o caso do consultor, que fez um excelente e descritivo trabalho.

Ainda assim, o principal crescimento é dos direitos de transmissão. 1114% nos 10 anos, 950 só de 2007 para cá, com apenas uma Copa do Mundo no caminho - quando a FIFA mais lucra. Vou pegar como referência os dados sobre o Campeonato Brasileiro de Futebol, que em 2007 vive o fim da parceria Globo-Record, via Traffic, e a tentativa da emissora de Edir Macedo em tirar os principais torneios da líder de mercado - inclusive, teria oferecido mais pela Copa do Mundo FIFA, mas não ganhou porque a FIFA considerava que a escolha era da confederação local, que usou como justificativa a relação e a expertise da emissora dos Marinhos, que ganharam automaticamente as edições de 2018 e 2022, sem qualquer consulta. Isso inflacionou o mercado de direitos de transmissão no país.

Em 2003, para se ter uma ideia, o SBT ofereceu ao Clube dos 13, ainda que este sob contrato com as Organizações Globo - à época contrato com todas as mídias -, um valor mínimo de R$ 200 milhões para 2003, além de outros acréscimos com parcerias em loterias e programas estilo Roda a Roda. Após o final de todo o imbróglio, que envolveu até o CADE, em 2011, as Organizações acabaram pagando mais de R$ 1 bilhão pelo torneio. Um aumento também substancial no período e que deve ser ainda maior para 2015-2018, segundo as informações dos meios de comunicação, já negociados (ver mais sobre o caso na minha dissertação).

Só para registro, trago dois casos que demonstram crescimento puxado pelos direitos de transmissão. O primeiro é o do Corinthians, cujo fenômeno Ronaldo modificou a estrutura do marketing do clube, impulsionando receitas e equilibrando as contas do clube (dados do blog Olhar Crônico Esportivo, de Emerson Gonçalves, no Globoesporte.com)


O segundo caso é o da própria FIFA, que após o fracasso, em meio a corrupção e falência da empresa de marketing esportivo ISL em 2001, mudou a sua forma de negociação dos direitos de transmissão e vem conseguindo ganhar cada vez mais com isso. Se antes vendia por região, com cada país selecionando a sua melhor forma de disputa, passou a atuar por país e por mídia, amplificando as suas receitas com isso de forma gritante desde então.
Mas como Copa do Mundo FIFA só existe a cada quatro anos, é preciso ter outras receitas para manter o lucro bilionário anual da maior entidade paraestatal do mundo. E a turma de Blatter, Valcke e cia., fieis discípulos de João Havelange, aprenderam como se faz. Prova disso é  a relação do que gastam e do que ganham a cada quatro anos - em meio a muitas críticas aos Estados alheios.

O football association é marca exclusiva da entidade, por mais que nós torcedores fieis e apaixonados lutemos para demonstrar diariamente que não é só isso. Como diz um atropólogo pesquisador de futebol:

Pela volúpia com que atua no mercado de “bens simbólicos”, tendo valorizado exponencialmente seus produtos, seria apropriado pensar a FIFA como a gestora de uma join venture especializada na produção de eventos futebolísticos. Todavia, seu domínio é mais amplo, estendendo-se sobre o futebol de espetáculo (DAMO, Arlei Sander. Produção e consumo de megaeventos esportivos – apontamentos em perspectiva antropológica. Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo, v. 8, n. 21, p. 67-92, mar. 2011. p. 87).


Dados da FIFA também do blog Olhar Crônico Esportivo, de Emerson Gonçalves, no Globoesporte.com

Mas um detalhe muito interessante e bem observado é apontado por Somoggi na entrevista para a Gazeta do Povo: 


“Alguma coisa está fora de ordem. O que acontece no Brasil é o inverso do que acontece na Europa. A seleção é uma marca extremamente relevante para o cenário internacional, enquanto os nossos clubes não conseguem expressão”.

Na Espanha, fala-se ape­­nas de Barcelona e Real Ma­­drid; na Inglaterra, de Man­­chester City, de Chelsea... Na Alemanha, ocupa-se mais de Borussia e Bayern do que com a seleção”.
“Talvez a confederação tenha medo de fortalecer os clubes porque os veja como concorrentes. Eles têm de ver nesses números da CBF o potencial que existe no mercado para se desenvol­­verem e cobrar da confederação a melhor estratégia para o campeonato nacional”.


Enquanto eu relatei que os times a Série A tiveram acréscimo no que recebem, há clubes neste meio que recebem quase metade do último grupo com acordo plurianual com o maior grupo comunicacional do país. Na Série B então, a diferença é gritante. Ano passado, enquanto o Palmeiras recebeu R$ 75 milhões, os demais, com exceção do Sport, receberam menos de R$ 5 milhões. A CBF prega a independência dos clubes para negociarem, mas foi um dos elementos a brigar nos bastidores pela implosão do Clube dos 13 e responsável direto pelo fim da FBA, que representava os clubes da Série B, cujo contrato foi sumariamente encerrado,com os clubes calados.

Ver a CBF, com bem menos jogos a negociar, dando lucro todo ano enquanto seus afiliados sofrem para arranjar um patrocínio máster que dê conta é um problema. Ainda que o saneamento da entidade tenha sido a grande ação das mais de duas décadas de Ricardo Teixeira no comando dela - por mais problemas que pode ter gerado ao longo destes anos, alguns que se perpetuam. Por que não ensinar aos afiliados, que realmente movimentam o cotidiano do futebol, para além do evento a cada quatro anos?

Somoggi deu a dica e talvez este sim seja o principal ponto a se abordar no seu excelente e minucioso trabalho de avaliação das contas da entidade-mór do futebol brasileiro.

(Ah, quem quiser, eu posso repassar os dados por e-mail, assim como os contatos do consultor para os colegas de profissão).

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