sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Uma Viagem por repúblicas soviéticas

No último texto que nós publicamos aqui sobre uma obra de Graciliano Ramos, destacamos o fato de o autor alagoano ter escrito numa categoria literária que não o foi comum, a infanto-juvenil. Para esta análise, temos mais umas vez um texto relativamente diferente ao outros cinco que já tive a oportunidade de ler deste autor.

Viagem está mais para um diário de viagens, em que Graciliano coloca suas impressões diárias de uma viagem que realizou em países soviéticos. Sempre tive curiosidade em saber como eram/são as sociedades tão criticadas pela mídia por carregarem em si certo caráter revolucionário – muito menos que o desejável -, casos de Cuba e da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Este livro é uma oportunidade para ver a URSS através do espelho de alguém sem conceitos negativos preconcebidos.

Um curioso caso de um autor tão ligado ao regionalismo, ao trazer na maioria dos seus livros personagens com características do seu local origem falando sobre uma sociedade que se mostra totalmente diferente da sua, organizada, alfabetizada e, aparentemente, com saúde e confiança no seu trabalho.

Justo para alguém assim descrito no prefácio por Jorge Amado, este que estaria mais ligado ao comunismo, chegando até a ser cassado enquanto deputado federal pelo PCB:

“Pessimista em relação aos político e à vida literária, foi extraordinária sua confiança no povo, sua fidelidade à literatura. Homem de quebrar, jamais de dobrar-se, sem vaidade mas de profundo orgulho, reservado e mesmo tímido em certos momentos, soube, no entanto, não se isolar da vida e dos problemas do país, não fugir às obrigações impostas pro seu tempo dramático.” (p. 10).

Neste livro, Graciliano passa por outros países, caso da Geórgia, antes de chegar à capital Moscou com uma comitiva de brasileiros. Ele se surpreende com algumas informações, aparenta detestas as formalidades e "mecanizações" das situações sociais apresentadas a eles e se impressiona com algumas coisas, como os desfiles para que todos possam ver Josef Stálin:

“A clara advertência ao capitalismo não se limitou à exposição formidável: a cena desenrolada na Praça Vermelha, diante do Kremlin, do monumento onde Lenin repousa, mostrou-nos uma potência maior que a proveniente dos quartéis, das academias militares, dos laboratórios, das fábricas de morte. A pesada ferragem destruidora não atrairia pessoas de sessenta países, ali reunidas. O que nos enchia de pasmo era a alma de todo um povo, manifesta nas organizações de operários, de estudantes, de sociedades incontáveis. Gente das oficinas, dos esportes, dos jornais, dos teatros, a marchar sempre, sempre. Cartazes e mais cartazes; enormes letreiros expostos em quados levados por muitos indivíduos. Retratos e mais retratos: os dirigentes da revolução, antigos e modernos, de Marx e Engels a Mao Tse Tung e Togliat” (p. 56).

Uma das coisas interessantes é a série de visitas por museus, fábricas e áreas de lazer. Inclusive, percebemos através do autor que as riquezas oriundas do czarismo permaneciam lá, só que para visitação pública, talvez para mostrar o contraste das riquezas para poucos que existia até décadas antes. Fica para nós a estranheza de não terem destruído tudo aquilo, a não ser que se tenha recriado como forma de lembrança de um passado que não deveria ser venerado, mas sim o que o havia derrubado.

“Apontam-nos com gravidade, quase veneração, os pratos imensos, as rendas e czarina, os rabichos, trabalho paciente de ourivesaria, as escrituras santas magníficas, a roupa de Pedro o Grande, homem gigantesco no corpo e na alma. Nesse terrível museu vemos isso. A família imperial, a santa Igreja, cavaleiros metidos em cotas de malhas, pedras e pérolas. Onde estaria o povo? Ainda não se falava nele. Iria aparecer alguns séculos depois” (p. 93).

Só que Mestre Graça não esquece da situação totalmente diferente vivida no seu país de origem. É com ironia que ele destaca a abundância de livros encontrados, vendidos e comprados na União Soviética e realiza uma comparação "saudosa" com a realidade vivida do outro lado. Se pensarmos na sociedade alagoana da década de 1950,  a qual tão bem descreveu em outras obras, aí que a comparação fica absurda.

“Lá dentro, biblioteca larga, a abundância de literatura que nos surge em toda a parte. Filas diante de livrarias; as edições esgotam-se com rapidez inadmissível. Trezentas e cinquenta mil bibliotecas do Estado, com setecentos milhões de volumes. As dos sindicatos são doze mil, e há nelas sessenta milhões de livros. Para que tanta letra? Afinal essa fartura de impressos torna-se monótona, tem aparência de mania. Abafamos. Não acharemos neste país um analfabeto? Saudades de nossa terra simples, onde os analfabetos engordam, proliferam, sobem, mandam, na graça de Deus. Felizmente há no parque de cultura restaurantes e bilhares. Ainda podemos jogar uma partida, beber uma cerveja. A ditadura horrível não nos proíbe essas necessidades cristãs” (p. 100).

Outro ponto interessante vem ao final do livro, quando ele descreve que pessoas com restos do individualismo burguês viviam em casebres, isoladas por não apoiarem a nova forma social lá desenvolvida. Confesso que achei essa parte meio confusa, já que a maioria dos que discordavam do stalinismo foram mortos, mesmo os que lutaram no mesmo lado da trincheira na Revolução Russa.

“Ainda existem, é claro, poucos numerosos, mesquinhos, ausentes da literatura, que os celebra noutras partes, da crônica policial derramada escandalosamente nos jornais. Como é possível haver essa gente num país onde se aboliu a propriedade? Ora essa! Possuímos roupas, móveis, livros, objetos de arte, às vezes caros e furtáveis, e, nas multidões festivas, longos dedos ágeis podem facilmente invadir-nos os bolsos, levar-nos a carteira. Não estamos no paraíso mencionado com ironia besta na imprensa rica. Os ladrões arrogantes, prósperos, eficazes na política, dominadores nos bancos, na indústria, no comércio, desapareceram, mas restam, sem dúvida, gatunos pequenos, vagabundos, insignificantes, a democracia dos patifes. - “Belezas do individualismo”.

“[...] As criaturas fechadas, esquivas, propensas ao isolamento, permaneceriam, invisíveis, espalhadas. Estavam ali patentes, cada vez mais fracos, a encolher-se na umidade e na friagem, resíduos do capitalismo” (184).

Graciliano Ramos, da sua forma, seca e direta, mostra certa desconfiança com a "sociedade perfeita" que lhe apresentaram, porém, já saíra do Brasil com a desconfiança quanto à "sociedade péssima" que os burgueses nacionais descreviam dos países soviéticos. Ele descreve coisas inacreditáveis e muito 'certinhas' para qualquer forma social. Além disso, ele foi lá como um visitante estrangeiro, difícil imaginar algo natural.

O que podemos retirar a partir da visão de Graciliano é que havia uma extrema preocupação em fazer tudo de uma determinada maneira, até mesmo quando ele cita os guardas de trânsito dos pedestres, que definiam que ia e quem vinha nas calçadas. Na nossa interpretação, em especial a partir de todo o desenrolar histórico posterior, faltavam liberdades. Liberdades não no sentido capitalista de ser, individualistas, mas no sentido de pensar a coletividade respeitando determinadas necessidades individuais.

A diferença entre autoritarismo e centralidade para a liberdade aparenta ser bem curta na prática. A preocupação em se manter uma das duas alternativas é perigosa para qualquer convivência social.


Referência Bibliográfica:
RAMOS, Graciliano. Viagem: Tcheco-Eslováquia-URSS, obra póstuma; prefácio de Jorge Amado. 14. ed. Rio de Janeiro: Record; São Paulo, 1984.

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