Comprei o livro num dos sebos da Sé, em São Paulo, achando que fosse Linhas Tortas (1962), era o que dizia a lombada. Passei meses até ter tempo para me dedicar aos prazeres de uma literatura que não me exigisse fichamentos e eis que bastou abri-lo para perceber que se tratava de Infância (1945). Mais uma coisa para completar as férias que acabaram não sendo férias e os livros que no final das contas eu esperava ler e acabei não lendo.
De qualquer forma, apesar de já ter lido um boa quantidade de obras de Graciliano Ramos, dos mais diversos tipos, Infância eu não havia adquirido para ler - Viventes das Alagoas (1962) acabou ficando em Maceió para uma leitura possível só a partir do ano que vem. Ah, além disso, por mais que a edição date de 1976, por conta do erro de encadernação o livro foi praticamente intocado, pois encontrei muitas páginas grudadas, que me fizerem deixar marcas nele - e eu não gosto de livros de qualquer forma marcados....
INFÂNCIA
Como o posfácio de Octávio de Faria destaca, Infância serve para entender a formação sociocultural recebida por esse destacado autor do regionalismo brasileiro, a secura de livros como Vidas Secas e São Bernardo presentes em boa parte do crescimento de Graciliano Ramos.
Quem nos conta esta história é alguém ciente do que vivenciou, quer dizer, ciente de que a memória não permitirá com que lembre datas exatas, ainda mais que quando criança pouco se preocupava com essas coisas. As páginas iniciais começariam com ele tendo cerca de dois anos - se é que há alguém que lembra de algo dessa idade. O estilo da narração, puxando para esse narrador do futuro olhando para o passado, é a marca do seu escrever, como nos clássicos casos de personagens-narradores Luís da Silva, em Angústia, e Paulo Honório, em São Bernardo - este que é citado nalguns trechos: “E o
bando aumentava, era diante do muro de Seu Paulo Honório um pelotão
ruidoso, que enfeitava a areia com flores de mulungu” (82).
Contando, inclusive, com as dificuldades encontradas mesmo para uma família de classe média, como a dele, que por algumas vezes o patriarca teve que mudar de ofício e, consequentemente, de cidade - entre Maceió e cidades do interior de Alagoas e Pernambuco. Num dos trechos, Graciliano narra a preocupação do seu pai com a condição social de classe média, numa descrição até que boa, por sinal, se analisarmos do ponto de vista sociológico, apesar de ser sob a perspectiva para justificar as surras que ele enquanto criança e José, negrinho mais velho que ele, sofriam de vez em quando:
“Hoje
acho naturais as violências que o cegavam, Se ele estivesse embaixo,
livre de ambições, ou em cima, na prosperidade, eu e o moleque José
teríamos vivido em sossego. Mas no meio, receando cair, avançando a
custo, perseguido pelo verão, arruinado pela epizootia, indeciso,
obediente ao chefe político, à justiça e ao fisco, precisava
desabafar, soltar a zanga concentrada. Aperreava o devedor e
afligia-se temendo calotes. Venerava o credor e, pontual no
pagamento, economizava com avareza. Só não economizava pancadas e
repreensões. Éramos repreendidos e batidos” (30).
ALFABETIZAÇÃO
É difícil imaginar hoje, mas Graciliano Ramos teve uma relação inicial de ódio com as letras. O interesse se deu a esmo, após se encontrar curioso frente a livros com folhas amarelas e manchas pretas em seu interior. O jovem Graciliano achou estranho que o pai tenha perguntado se ele queria conhecer aquilo, já que sempre o mandavam fazer as coisas:
“Meu pai tentou avivar-me a curiosidade valorizando com energia as linhas mal impressas, falhadas, antipáticas. Afirmou que as pessoas familiarizadas com elas dispunham de armas terríveis. Isto me pareceu absurdo: os traços insignificantes não tinham feição perigosa de armas. Ouvi os louvores, incrédulo (102).
[...]
“Foi assim que se exprimiu o Tentador, humanizado, naquela manhã funesta. A consulta me surpreendeu. Em geral não indagavam se qualquer coisa era do meu agrado: havia obrigações, e tinha de submeter-me. A liberdade que me ofereciam de repente, o direito de optar, insinuou-me uma vaga desconfiança” (103).
A relação acabou sendo de mais ódio do que amor, até que ele descobrisse por conta própria o interesse pela leitura, a possibilidade de conhecer lugares que ele nunca sequer imaginara que poderia chegar. Isso se deu justo quando nem os pais esperavam alguma coisa dele em relação aos estudos. Nem ele esperava mais alguma coisa, via-se como um incapacitado, tamanha a dificuldade em ler (especialmente por conta dos ds e ts) e escrever.
Infância mostra a sua jornada de esperanças e raivas, na maioria das vezes com o maior incentivo da segunda por parte de seus familiares e até mesmo da maioria dos seus professores enquanto criança:
“Não me
ajeitava a esse trabalho: a mão segurava mal a caneta, ia e vinha em
sacudidelas, a pena caprichosa fugia da linha, evitava as curvas,
rasgava o papel, andava à toa como uma barata doida, semeando
borrões. De nada servia pegarem-me os dedos, tentarem dominá-los;
resistiam, divagam, pesados, úmidos, e a tinta se misturava ao suor,
deixando na folha grandes manchas” (118).
No meu entender, apesar de publicado em 1945, há uma forte crítica perante a educação formal das crianças num dos Estados, ainda hoje, com os maiores índices de analfabetismo do país. Só uma professora é mostrada como carinhosa - a "tia" que muitos de nós lembramos -, os demais mostram falta de interesse por um aluno com dificuldade de aprendizado. Além da total falta de perspectiva para tornar a aula com maior atratividade - um problema ainda em todos os níveis do conhecimento...
Mas a vontade de conhecer o que tinha naqueles papeis e nos folhetos continuava a ponto de irritá-lo sobremaneira. Numa segunda tentativa, após o jantar, o pai acaba conseguindo fazer com que a curiosidade sobre uma história desatravanque o pensamento perante erros de leitura, afinal ele queria saber como a história terminasse, por "pior" que fosse o livro.
O momento em que ele é atiçado é bem interessante:
Enquanto isso, a escola continuava com o ritmo de sempre, e que vai continuar, pelo menos, até os meus tempos: a preocupação não é que a criança tenha curiosidade sobre o mundo, mas que decore durante uma semana uma série de semanas, até esquecer no final de semana seguinte. Ele discorda do método e, apesar de saber de muito mais coisas que seus colegas, acaba relegado na turma:
Isso só muda quando há um teste surpresa. Mesmo sem ter saído de casa, ele conhece geografias, detalhadas, de vários lugares da Europa. Os primeiros textos para o jornalzinho são modificados pelo editor - sempre eles -, o que faz sentir com ainda menos qualidade do que os outros pudessem imaginar.
CRÍTICA SOCIAL
Através do perfil crítico do Mestre Graça - ainda mestre, apesar de ter dito na década de 1920 que o futebol seria "modismo litorâneo" e "fogo de palha" -, percebi vários "causos sociais" típicos de Alagoas que, infelizmente, continuam a aparecer aqui ou acolá e marcando os anos de vida de muitos dos habitantes nascidos ou que passam por terras caetés.
Mas antes disso, faço questão de registrar que o menino Graciliano refletia muito dos preconceitos arraigados na sociedade recém-saída do escravismo. Além de uma tentativa de mostrar ao amigo negro José que eles eram diferentes, ao tentar "auxiliar" o pai numa surra - e acabar dividindo as pancadas como castigo - ele cita numa parte a "estranheza" por ver uma pessoa afrodescendente bem vestida, que é "saudado" pelo pai na mercearia:
“Foi
por esse tempo que o negro velho apareceu, limpo, de colarinho,
gravata, botinas, roupa de cassineta e óculos. Estranhei, pois não
admitia tal decência em negros, e manifestei a surpresa em linguagem
da cozinha” (109).
Já um pouco mais crescido, ele acaba por ver o pai tratar mal um mendigo, que nada tinha e nada perturbara, só entrara na casa de sua família e foi tremendamente rejeitado pela mulher da casa. O homem, recém-empossado juiz substituto usa-se disso para pedir a prisão de Venta-Romba. Graciliano se revolta, mas não teria e nem consegue fazer nada para evitar a tremenda injustiça, com alguém já com tantos problemas na vida:
“A voz corria mansa; as rugas da cara morena se aprofundavam num
sorriso constante o nevoeiro dos olhos se iluminava com estranha
doçura. Nunca vi mendigo tão brando A fome, a seca, noites frias
passadas ao relento, a vagabundagem, a solidão, todas as misérias
acumuladas num horrível fim de existência haviam produzido aquela
paz. Não era resignação. Nem parecia ter consciência dos
padecimentos: as dores escorregavam nele sem deixar mossa” (223).
Por mais importância que pudesse parecer para uma pessoa com pouca preocupação de consciência e, principalmente, de exigir qualquer poder perante os outros - além das crianças -, Graciliano explica que era um função que o coronel da cidade precisava por uma pessoa que não fizesse nada demais. As coisas naquela época - será que só naquela época - eram da seguinte forma:
“Naquele
tempo, e depois, os cargos se davam a sequazes dóceis, perfeitamente
cegos. Isto convinha à justiça. Necessário absolver amigos,
condenar inimigos, sem o que a máquina eleitoral emperraria.
“Os
magistrados de anel e carta diligenciavam acomodar-se, encolher-se,
faziam vista grossa a muita bandalheira. De repente acuavam, tinham
melindres que o mandão local não entendia e lançava à conta de má
vontade. E lá vinham rixas, viagens rápidas, afrontas, um libelo
contestado a punhal ou cacete. Enfim, os bacharéis se aguentavam
mal” (222).
Período que acabou por marcar fortemente o alagoano como quem vive sempre com uma peixeira, assassino nato, dada a quantidade de casos que se multiplicaram e se tornaram famosos. Casos estes que avançaram décadas, chegando até meados dos anos 1990, sob ação dos policiais membros da chamada "Gangue fardada", sob o comando do Coronel Cavalcante, que recebiam as encomendas para executar o crime de famílias com destaque na sociedade alagoana.
Graciliano cita alguns destes sobrenomes, que, curiosamente, ainda percorrem o imaginário político local através de seus descendentes - e suas histórias de pedido ou alvo de emboscadas por motivos políticos. Eles mandavam e desmandavam nas cidades:
“Os
maiorais do município, governo e oposição, vinham de um grupo de
famílias mais ou menos entrelaçadas, poderosas no Nordeste:
Cavalcantis, Albuquerques, Siqueiras, Tenórios, Aquinos” (50).
A violência era alardeada pelos jornais da época, mas pouco, ou quase nada se fazia para evitar a matança, que geralmente acometia membros das classes subjugadas, com raros casos de membros da elite sendo alvo desta violência. Se pegarmos as possibilidades de aquisição de segurança, a diferença entre pobres mortos e ricos é ainda maior hoje, por uma conjunção de motivos bem diferentes daquela época, por mais que seguido com alguns deles.
A definição do período é bem interessante, inclusive para entender a violência na zona rural do país e, além disso, como esse fator não vem a ser novo em Alagoas com o crescimento desordenado vivenciado nas últimas décadas, especialmente em quantidade de moradores na capital:
“Vivíamos
num grande cercado de engenho, e só tinha sossego quem adulava o
senhor. Os jornais da capital noticiavam horrores, mas ninguém se
atrevia a assinar uma denúncia. Qualquer indiscrição podia
originar incêndios, bordoadas, prisões ou mortes.
Presumo
que, enquanto morei ali, o júri não funcionou. Contudo chegavam
defuntos à cidade quase diariamente.
“O
velho frade, influente num município vizinho, dizia que nunca matara
um homem. Matava cabra ruim, muito cabra ruim. No meu município
também se assassinavam homens, embora se preferissem os cabras
ruins. Quando um proprietário governista queria molestar um
adversário, mandava suprimir-lhe alguns moradores – e a pessoa
ameaçada vendia-lhe a terra por menos valor. Se não vendia logo,
novos moradores iam desaparecendo, até que a transação se
efetuava. Só raramente, em casos de ofensas pessoais, questões de
família, se eliminavam membros da classe elevada. A esses tomavam-se
os bens, por meios mais ou menos legais. Mas a canalha era dizimada,
os cabras ruins do velho Frade morriam em abundância, e a gente se
habituava aos cadáveres que manchavam a cidade” (211).
DESENHOS
Não pude folhear ainda alguma edição nova deste livro, ainda sob o comando editorial da Record, percebi, pelo que busquei na internet, que a capa traz um dos desenhos que perfazem toda a obra. Gostei bastante dos traços, literalmente, utilizados para descrever algumas cenas.
O autor é Darcy Penteado, que a internet me diz que faleceu em 1987, e que além de desenhista era cenógrafo, autor teatral e pioneiro na militância pelos direitos das Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT). A assinatura de todos os desenhos é de Paris - lembrando que vivíamos um período de forte repressão pela ditadura militar.
Eles são a cereja do bolo de um livro que nos faz entender muito do contexto social que cresceu Graciliano Ramos, mesmo que com todas as incertitudes que a memória pode nos causar, com o acréscimo de sensações e fatos criados pela própria consciência.
REFERÊNCIAS
RAMOS,
Graciliano. Infância; posfácio de Octávio de Faria, ilustração
Darci Penteado. 11.ed. Rio, São Paulo: Record, Martins, 1976.
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