domingo, 3 de fevereiro de 2013

Caciques, padre e um caeté na estreia de Graciliano

O naufrágio do barco que trazia o bispo Pero Fernandes Sardinha forçou que este e outros marinheiros se jogassem ao mar em meio a um Brasil ainda desconhecido, escreve, quer dizer, pensa o autor, com papéis, tinta e conhaque na mesa... Os índios fazem um ritual, sob o olhar de uma bela mulher.... O bispo clama o reconhecimento divino com a cruz sendo mostrada aos índios, que mostram-lhe o porrete de madeira. Como costurar a história?... Os caetés tratam o corpo e um deles come uma perna. O bispo morto, mas e o chefe, marido da amada?... Ainda que policiais aparecessem, nada seria feito. Nisso, a justiça caeté era melhor que a contemporânea: preso é julgado e condenado... Vez do caeté observar o jogo de poker, ou seria o reconhecimento de um da etnia na mesa?

Este seria apenas, numa construção própria, o encadeamento das imagens de Poty em Caetés, obra de estreia de Graciliano Ramos (1892-1953), publicada em 1933. Confesso que após ter visto as ilustrações dele em Infância, fiquei frustrado com a disposição das imagens na edição que eu li do primeiro livro de Graciliano.

Situado em Palmeira dos Índios, cidade que conheceu bem, a ponto de ser prefeito dela por dois anos com um modelo inovador de gestão, com a apresentação de relatórios anuais sobre os problemas e o que pôde ser feito numa realidade tão oligárquica do interior nordestino, Caetés traz um formato que vai ser bastante utilizado pelo autor nos livros seguintes: o narrador-personagem.

Se depois veremos Paulo Honório, em São Bernardo, contar o seu crescimento em busca do lucro e as perdas pessoas; e o ápice das preocupações de Luís da Silva em Angústia; João Valério é um jovem que trabalha numa casa de empréstimos de dinheiro, escreve para o jornal da paróquia, está no ciclo de convívio da classe média local, mas que possui como maior objetivo naquele momento o de escrever um livro sobre a  história da morte do bispo Sardinha, que teria sido comido pelos índios caetés em território alagoano.
LIVRO
O livro já começa com uma cena que chama bastante atenção. João Valério se despede do dono da casa, após as tradicionais conversas e jogos com senhoras e senhores da cidade, deixa-o no quarto e ao despedir-se da esposa dele acaba beijando o pescoço dela. Detalhe: o dono da casa é um dos seus chefes. A partir daí vamos acompanhando os rompantes do jovem em tentar descobrir se Luísa gostava dele ou não, se deveria seguir na casa e no emprego de Adrião e como continuar a conviver com as demais personalidades da sociedade de Palmeira dos Índios.

João Valério resolve deixar de visitar a casa de Adrião, onde alguns homens jogam xadrez, as mulheres tocam piano, cantam, conversam e cochilam em meio a conversas filosóficas desenvolvidas por Isidoro Pinheiro e pelo Padre Atanásio. Num momento ou outro, quando era cobrado, ele até voltava lá, mas opta por ficar escondido atrás das cortinas ou ir fumar no jardim da casa. O motivo principal era que Luísa não mudara o comportamento apesar da audácia de João na outra noite. Ele acredita que poderia ocupar aquele tempo das noites na escrita e na necessária pesquisa para escrever Caetés. Nada feito:

“Caciques. Que entendia eu de caciques? Melhor seria compor uma novela em que arrumasse Padre Atanásio, o Dr. Liberato, Nicolau Varejão, o Pinheiro, D. Engrácia. Mas como achar enredo, dispor as personagens, dar-lhes vida? Decididamente não tinha habilidade para a empresa: por mais que me esforçasse, só conseguiria garatujar uma narrativa embaciada e amorfa” (23).

Era uma situação difícil de avanço, pois João Valério sempre via Luísa como uma mulher que não trairia o marido. Além disso, por mais que Adrião ficasse doente, sempre se recuperava, o que evitava qualquer perspectiva positiva de uma viuvez, que permitiria à viúva se encantar publicamente por outro homem.

Havia outras mulheres solteiras, e até com bons dotes da família, nas reuniões noturnas. Mas Valério não conseguia tirar da cabeça as reações de Luísa. Curiosamente, apesar de ser reservado, ele não deixa de a inquirir quando acha necessário. Na primeira vez, na cadeira do jardim, ele não tem êxito após o seu pedido de desculpas. Pelo contrário, percebe a mudança de comportamento dela nos momentos seguintes e resolve olhar e conversar com outras, ainda que não desenvolvendo (e desaparecendo) posteriormente.

Valério mora numa pensão com várias personagens citadas, casos de Dr. Liberato, o médico que aparece para curar todo mundo de quase tudo, e, principalmente, Pinheiro, que é o principal amigo dele na cidade, ouvindo-o e dando sugestões para que ele se arranje com alguma filha de alguém rico na cidade. Em meio à desilusão com Luísa, ele até pensara em Marta Varejão - filha de Nicolau, um pobre coitado que sente vergonha da filha por ser pobre:

“Não que me preocupe exclusivamente com o dinheiro, pois se Marta fosse vesga e coxa não a aceitaria por preço nenhum. Mas era bonita, e os bens da viúva davam-lhe encantos que a princípio eu não tinha descoberto” (37-8).

Era paixão rápida, se é que chegava a ser paixão. Uma troca de palavras, encontrava algumas coisas boas em Marta, mas depois lembrava do despeito de Luísa com ele e esquecia tudo, renegando a provável mãe de seus futuros filhos, que o acompanharia para construir a vida no Rio de Janeiro, lugar muito falado por ali.

Hora ou outra, o livro voltava, mas sempre com mais páginas a serem jogadas fora do que aproveitadas. Havia no jovem João Valério um pouco de vontade de aparecer, de se mostrar como um jovem diferente naquela pequena cidade. Cidade esta representada por figuras clássicas, como comerciantes - que atuam diretamente para conseguir dinheiro através de empréstimos -, o médico que trabalha em tudo, com direito ao Neves, farmacêutico, os jurados, e até o novo "futuro grande político", Eugênio Barroca, que começa a se mexer para ser o governador de Alagoas dali a alguns anos.

O intuito de Valério não era ser famoso no Rio de Janeiro por conta da sua produção literária. Sequer era passar do primeiro livro - será que Graciliano pensara ter a capacidade em produzir outros livros depois deste? Apenas se sentir orgulhoso no seu espaço social:

“Talvez eu pudesse também, com exígua ciência e aturado esforço, chegar um dia a alinhavar os meus caetés. Não que esperasse embasbacar os povos do futuro. Oh! não! As minhas ambições são modestas. Contentava-me um triunfo caseiro e transitório, que impressionasse Luísa, Marta Varejão, os Mendonça, Evaristo Barroca. Desejava que nas barbearias, no cinema, na farmácia Neves, no café Bacurau, dissessem: ‘Então já leram o romance do Valério?” Ou que na redação da Semana, em discussões entre Isidoro Padre Atanásio, a minha autoridade fosse invocada: ‘Isto de selvagens e histórias velhas é com o Valério’” (51). 

Afinal, consegue ter uma resposta mais física de Luísa, meses depois, num período em que Adrião viajara a negócios. Ele, cheio de dúvidas, é recebido de forma mais tranquila do que imaginava. Aqui Graciliano dá detalhes do que será a sua característica de narração ao não descrever os pormenores das relações sexuais entre os dois. Não se preocupa tanto com o diálogo, a troca entre as personagens, mas como o protagonista a vê. Assim, esta descrição fica meio bruta, rápida:

“Soltei-lhe as mãos, agarrei-lhe a cabeça, beijei-a na boca, devagar e com voracidade. Apertei-a, machucando-lhe os peitos, mordendo os beiços e a língua. De longe em longe interrompia este prazer violento e doloroso, quando já não podia respirar. E recomeçava. As mãos dela prendiam-me; através da roupa leve eu lhe sentia a vibração dos músculos” (144). 

Os momentos românticos ficam para a imaginação anterior de João Valério, crendo numa mulher cheia de pudores e, apaixonado, torcendo por qualquer coisa a mais que o patrão nunca tivera feito. A estrela a procurar no céu para indicar o caminho daquela paixão em meio à certa revolta dele por não conseguir entender as "almas caprichosas das mulheres. Assim, antes de conseguir uma resposta - ou ao menos pensar que conseguiu avançar em algo - ele sonha com o que seria possível naquelas condições:

“Tencionava poder um dia, com o consentimento dela, apertar-lhe as mãos, correr os lábios por aqueles dedos brancos e finos, pelos braços, até o cotovelo. Em momentos de otimismo aventurei-me a chegar à espádua. Não era uma aspiração demasiado exigente, e eu punha tanto respeito nela que excluí a ideia de que aquilo constituísse traição ao Teixeira. Decidi logo que um homem tão prático não havia ainda bajulado o braço de Luísa e que pelo menos esta parte do corpo dela não lhe pertencia. Convicção idiota, evidentemente. Eu me contentava com o braço – e achava excessivo. Uma felicidade imensa” (91). 

A história segue, mas o avançar da história romântica não necessariamente vai ser o foco de atenção de Caetés. Vemos discussões entre alguns membros da elite palmeirense, novas rodas de conversa, denúncias, mudanças de posicionamento, mas tudo a partir das vistas de João Valério, de um apaixonado que às vezes parece ficar em dúvida até mesmo sobre a paixão. O desfecho me surpreendeu bastante por conta de determinadas expectativas que nós acabamos tendo sobre ciclos "naturais" deste tipo de história. Graciliano não tem nada de "natural", por mais que reflita bem a sociedade em torno.

Esta característica aparece em alguns trechos. Além da evolução de Eugênio Barroca, com direito a "passar por cima" do antigo manda-chuva da cidade, há a forte discussão referente à absolvição de um culpado por assassinato que toda cidade sabia que tinha cometido tal crime provavelmente, provavelmente por sua posição social. O que dá como resposta coisas do tipo: "o que nós poderíamos fazer?".

Há também uma conversa interessante sobre o que significava ter poder naquelas região, algo bem distante de ser alfabetizado ou de conseguir arregimentar eleitores por questões político-ideológicas:

“- Tendo quatro soldados e um cabo, o senhor tem tudo [disse Vitorino]. 

O Dr. Castro reconheceu que os soldados e o cabo eram de grande eficiência: 

- Ora, a força do direito... isto é, o direito da força... Afinal, os senhores me entendem” (84). 

Ao final... Não se assustem, não contarei o final da história, mas destaco duas citações a seguir que estão presentes no final. Ao final, enquanto todxs choram no funeral de um morto, com quase toda a cidade presente, Nazaré pensa na quantidade de dinheiro que aquele deixará e é repelido com a palavra "monstro" por pensar nisso naquele momento. A resposta:

“- Eu? [um monstro – Nazaré] Está enganado. Que é um monstro? Uma criatura diferente das outras de sua espécie, não é? Pois eu sou como os outros homens. Um pouco melhor que uns, um pouco pior que outros. Vulgar. Monstro é você, Pinheiro. Você é esquisito, uma espécie de santo. Apesar de todos os seus defeitos, devia ter deixado para nascer daqui a dez mil anos. Você é monstruosamente bom, Pinheiro” (210). 

No final, apesar dos problemas com o livro que deveria ter sido escrito por João Valério, Graciliano Ramos escreve Caetés como uma metáfora da sociedade em volta. Canibais? Por que não? Mas a inocência dos índios caetés, que viveram em terra daquele Estado, era bem diferente da forma de canibalismo praticada por ali:

“Um caeté, sem dúvida. O Pinheiro é um santo, e eu às vezes me rio dele, dou razão a Nazaré, que é canalha. Guardo um ódio feroz ao Neves, um ódio irracional, e dissimulo, falo com ele: a falsidade do índio. E um dia me vingarei, se puder. Passo horas escutando as histórias de Nicolau Varejão, chego a convencer-me de que são verdades, gosto de ouvi-las. Agradam-me os desregramentos da imaginação. Um caeté” (222).

Se eu dissesse que este livro está entre os melhores que eu já li, estaria mentindo. Mesmo entre os que Graciliano Ramos escreveu. Fiquei sentindo falta de algumas coisas ao longo do livro, expectativas eram frustradas, apesar de alguns detalhes serem apresentados. Mas também se as nossas expectativas fossem consumadas não precisaríamos ler os livros. O óbvio está longe de caracterizar uma boa literatura. E Graciliano foge muito bem do óbvio, principalmente ao contar a história da região que provavelmente mais conheceu na vida.

REFERÊNCIA
RAMOS, Graciliano. Caetés; posfácio de Wilson Martins, ilustrações de Poty. 18.ed. Rio de Janeiro: Record, 1982.

Um comentário: