quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A morte e a morte de Quincas Berro Dágua

Joaquim Soares da Cunha. Funcionário público, pai de família, respeitado pela vizinhança, se é que ingeria álcool isso ocorria numa noite aqui ou acolá dentro de casa. Tão quieto que ouvia todos os berros da esposa sem pestanejar. Tão quieto que a filha não lembrava de nada sobre a convivência com este, para elas, digníssimo homem.

Quincas Berro Dágua, tão especialista em cachaça que quando voltou a ingerir água, por um descuido mediante ao desejo de estar perante uma garrafa com um líquido límpido num bar, ganhou o apelido que servia para coroar a fama dos boêmios dos diferentes bares, mesas de carteado, com baianas de acarajé, pescadores, rodas de acarajé e viventes de farra de todos os tipos. Era o "reizinho" da gente marginalizada, "o maior vagabundo da Bahia" e a vergonha da família que preferia declarar sua morte que garantir o convívio.

Lendo assim a caracterização de ambos parecem até duas personagens diferentes. São e não são. Trata-se do protagonista de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, história escrita por Jorge Amado (1912-2001) em uma semana sob pedido de Carlos Scliar para a primeira edição da revista Senhor, em 1959. O livro foi adaptado ao cinema, sob direção de Sérgio Machado e com Paulo José sendo o protagonista, em 2011.
Fonte: Casa de Jorge Amado
DUAS VIDAS
O relato começa com o grande confronto que marcará o livro: quando o defunto morreu? Teria sido numa madrugada qualquer, num cômodo sem chave na ladeira do Tabuão, mas na tranquilidade do sonho de quem trabalhou a vida inteira e teria ressurgido no final da vida? Ou após a maior das farras que Salvador já viu, no mar que tanto elogiava como seu lar mesmo nunca ter sido marinheiro?

Joaquim Soares da Cunha morrera para a família no dia em que deixou de ser o homem silencioso e que atendia a tudo ao que a mulher Otacília, mandona, pedia. Até o dia em que ele perde a paciência e resolve viver sem quaisquer amarras. Largar aquela vida sem qualquer destaque e se assumir como o Quincas, o homem que todxs na Bahia conheciam:

“A verdade é que Joaquim só começara a contar em suas vidas quando, naquele dia absurdo, depois de ter tachado Leonardo de ‘bestalhão’, fitou a ela [Vanda, a filha] e a Otacília e soltou-lhes na cara, inesperadamente: 
- Jararacas! 
E, com a maior tranquilidade desse mundo, como se estivesse a realizar o menor e mais banal dos atos, foi-se embora e não voltou” (42).

Depois desse dia, a família só sabia notícias de Joaquim quando ele era preso ou qualquer outra atividade negativa. A filha Vanda não deixava sequer que os filhos o conhecessem. Para eles, morreu no dia em que ele xingou a todo mundo, inclusive o genro Leonardo, e depois foi viver outra vida.

Como Quincas, que só bebia cachaça, recebeu o nome de Berro Dágua é uma história muito engraçada, que vale a pena registrar:

“Sobre o balcão [do espanhol Lopez] viu uma garrafa, transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou a placidez da manhã no mercado, abalando o próprio Elevador Lacerda em seus profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte, de um homem traído e desgraçado: 
- Águuuuua!” (50-51).
Fonte: Rafa Rosa
TRÊS MORTES
Já falei da primeira morte, a da família. Mas ao receber a notícia da morte de Joaquim Soares da Cunha por um santeiro, o único que lembrava ter ouvido falar nos familiares de Quincas em meio a uma de suas bebedeiras, a preocupação de Vanda, Leonardo e os irmãos Marrocas e Eduardo era que os vizinhos não descobrissem que ele não tinha morrida anos antes. A sensação de vergonha teria voltado e aumentou ao ver onde e como ele tinha morrido, num lugar qualquer, deitado com o dedo escapulindo da meia furada.

Depois de dúvidas sobre como e quanto gastar com o defunto, resolveram enterrá-lo com certas honrarias, gastando com paletó e sapatos novos - enquanto Leonardo tinha que reformar os dele por tantas vezes... Assim, na hora da morte, ressurgir o funcionário público caseiro:

“Essa a tese da família, aplaudida por vizinhos e amigos. Segundo eles, Quincas Berro Dágua, ao morrer, voltara a ser aquele antigo e respeitável Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da Mesa de Rendas Estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca, pasta sob o braço, ouvido com respeito pelos vizinhos, opinando sobre o tempo e a política, jamais visto num botequim de cachaça caseira e comedida” (18).

Enquanto esteve com o pai, até a noite já que era muito perigoso para as senhoras andarem por aquela região, ela viveu um grande conflito. Seguia ouvindo os xingamentos a ela, à mãe já morta e ao marido. Além do tradicional "saco de peidos" para a irmã Marrocas. Passou o dia inteiro ouvindo Quincas falar essas coisas em meio a um sorriso que não saía do rosto do defunto em nenhum momento. Apesar que, antes dela sair, parecia que Vanda cumpriria sua missão e resgataria a família:

“Vanda pensou que Otacília sentir-se-ia feliz no distante círculo do universo onde se encontrasse. Porque impunha-se finalmente sua vontade, a filha devotada restaurara Joaquim Soares da Cunha, aquele bom, tímido e obediente esposo e pai: bastava levantar a voz e fechar o rosto para tê-lo cordato e conciliador” (40).

Os amigos de noitada e que conheciam o grande Quincas Berro Dágua não acreditaram naquilo. Final das festas à noite, nada de rodas de capoeira e pouco movimento nos bares. A notícia se espalhava pela cidade e ninguém acreditava principalmente pela promessa durante a vida: 

“Não proclamara, peremptório, e tantas vezes Quincas Berro Dágua, com voz e jeito capazes de convencer ao mais descrente, que jamais morreria em terra, que só um túmulo era digno de sua picardia: o mar banhado de lua, as águas sem fim?” (48).

Os quatro amigos mais íntimos de Quincas, Curió, Negro Pastinha, cabo Martins e Pé-de-Vento, vão se encontrando e descobrindo a notícia. Para aliviar a tristeza, uma garrafa de pinga vai ficando no caminho até a ladeira do Tabuão. O "maior vagabundo da Bahia", que quase desistira até do seu sorriso, reapareceu com a chegada dos companheiros de farra:

“Quando Vanda começava a acreditar o pai vencido, disposto finalmente a entregar-se, a silenciar os lábios de sujas palavras, derrotado pela resistência silenciosa e cheia de dignidade por ela oposta a todas as suas provocações, de novo resplandecia o sorriso na face morta, mais do que nunca era de Quincas Berro Dágua o cadáver em sua frente” (65).

Os amigos são deixados cuidando do defunto por Eduardo e resolvem fazer uma nova festa em homenagem a Quincas. Tiram a roupa de funcionário público para não sujá-la com a pinga que deixava cair da boca. O vagabundo aparece cada vez mais e, para eles, resgata a vida. Após tanto discutirem quem ficaria com Quitéria dos Olhos Arregalados e sentirem a raiva do amante, ainda ali presente, saem do casebre com Quincas à tiracolo e andam pelas ladeiras de Salvador em busca de mais bebida, comida e farra.

Tudo vira festa. Quitéria, chorosa, fica feliz da vida e xinga Quincas por tê-la enganado. Os bares voltam a encher e eles resolvem enfrentar uma tempestade para rever o mar. Para não contar as cenas derradeiras, voltamos ao problema inicial:

“O que nos leva a constatar ter havido uma primeira morte, se não física pelo menos moral, datada de anos antes, somando um total de três, fazendo de Quincas um recordista da morte, um campeão do falecimento, dando-nos o direito de pensar terem sido só acontecimentos posteriores – a partir do atestado de óbito até seu mergulho no mar – uma farsa montada por ele com o intuito de mais uma vez atazanar a vida dos parentes, desgostar-lhes a existência, mergulhando-os na vergonha e nas murmurações da rua” (15).

Como ele teria dito na sua terceira morte: “Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há". Mas ele não deixou se enterrar em "cova rasa no chão".
Fonte: Casa de Jorge Amado
REFERÊNCIA
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua; posfácio de Affonso Romano de Sant’Anna. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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