domingo, 11 de agosto de 2013

Porque "os da periferia não têm compaixão"

Como contei da última vez que escrevi sobre um filme, estou tendo problemas para conseguir vê-los, mesmo com várias alternativas e sugestões, algumas reiteradas a cada conversa sobre cinema. Depois de quase um mês, recebi como "dever de casa" da primeira aula de Francês ver Intouchables (Olivier Nakache/Éric Toledano, FRA, 2011). Claro que não para entender o que falam, mas para acostumar com o ritmo e com a língua, a qual não temos tanto contato quanto o inglês, principalmente, no cotidiano.

Primeiro, não devemos confundir Intouchables com o estadunidense The Untouchables (Brian de Palma, EUA, 1987). Em "Intocáveis", a trama é baseada em fatos reais, contando a história de um multimilionário tetraplégico e seu auxiliar de enfermagem. Duas histórias e vidas bem diferentes, que possuem em comum o fato de nenhum dos dois gostar de recuar em decisões e/ou premissas de vida.

Tinha lido a sinopse quando foi para os cinemas que frequentei em Porto Alegre, acho que no final de 2012 ou em 2013, mas optei por ver outras coisas. Como confirmei ao ver o filme, se algo me atraía a vê-lo, havia detalhes que me afastava por conta de certo sinal de lugar-comum, talvez porque os acontecimentos terem sido baseados em fatos reais. Esta foi a hora de vê-lo.
O FILME
Philippe (François Cluzet) só pode mexer a cabeça, por conta de um acidente de parapente num dia de tempestade, para tentar sentir a dor da então esposa. Já Driss (Omar Sy), é senegalês e vive no subúrbio de Paris - como tantos africanos ou descendentes destes, que Sarkozy tanto quis expulsar ao final de seu mandato -, e passou os 6 meses anteriores na prisão.

O filme começa com a polícia perseguindo o carro esportivo em que os dois estão, fazendo com que inventem uma história para os policiais, que acabam por escoltá-los para uma emergência. Na verdade, isso é o prólogo, o longa começa a partir daí.

Driss está entre os candidatos a auxiliar de Philippe, mas não quer o emprego, apenas a assinatura para que, junto a outras duas, possa receber o benefício de desemprego da Previdência Social francesa, algo que o governo brasileiro passou a exigir recentemente - só não sei se na mesma quantidade. Ele passa à frente do candidato a ser entrevistado, por estar esperando por duas horas, e não mostra nenhuma vontade do trabalho, só tem interesse na assinatura e na linda ruiva que ajuda na seleção, Magalie (Audrey Fleurot).

No jeito de vestir, na forma de se colocar, Driss deixa claro que não tem interesse algum por ali, ao contrário dos seus concorrentes, que dão as respostas mais comuns - tentando velar o preconceito com o deficiente físico, mas refletindo num dos candidatos, que é pesquisador, a dificuldade do momento em se conseguir empregos. O curioso na relação inicial é a exposição da diferença entre formações culturais, com o rico sendo mais clássico e o pobre mais pop. Quando falam em Berlioz, Philippe trata do compositor erudito; Driss, do local de Paris. Quando questionado, Driss afirma conhecer o compositor, mas que Philippe não tinha nem conhecimento sobre música tampouco sobre os locais da cidade.

Voltando no dia seguinte, Yvonne (Anne Le Ny), governanta da casa, vai apresentando-o cada cômodo do lugar, mesmo que ele tenha ido lá por conta da assinatura que comprovasse que ele tentou arranjar um emprego. E isso sem dormir de um dia para o outro por ter sido expulso da casa da mãe (que, na verdade, é tia). Noite que também não havia sido dormida por Philippe. Driss só se convence de que aquilo poderia ser uma boa ao ver o imenso quarto que tinha e, especialmente, a banheira só para ele - após ter disputado o pequeno espaço com os "irmãos" menores no dia anterior.


Ri muito nos minutos iniciais do filme. Vemos um humor nada suave, mas que não busca a ridicularização pura de besteiróis cômicos. A diferença entre o auxiliar e o seu cliente são muito grandes e demonstradas não só com as diferentes formas de valorar um quadro ou uma música, mas também a diferentes maneiras de se viver e entender as pessoas que estão em volta de ambos.

Destaco o susto representado na foto acima ao saber que seria gasto tantos milhares de euros com "sangue espirrado na tela", além do merchandising para a empresa de chocolates, ainda que não pronunciada nas falas originais. As formas contemporâneas de valorar a arte, muito com especulação, acaba sendo uma crítica sutil que aparece no longa, com direito a quadro de um estreante sendo vendido a 11 mil euros porque "daqui a um ano valerá o dobro e você dirá 'Eu avisei'".

As pessoas que trabalham com Philippe se impressionam negativamente com o novo empregado da casa, um amigo chega a informar a ele que se trata de um ex-presidiário e que deveria demiti-lo porque "os da periferia não têm compaixão". Ao que o milionário responde que é por isso mesmo que contratou Driss. O preconceito que divide a sociedade francesa sendo exposto de forma efetiva, com o "cuidado com essa gente".

A filha adotada do chefe, Elisa (Alba Gaïa Kraghede Bellugi), acha que pode tratá-lo como escravo, algo que não permite que ocorra, avisando ao pai dela que se continuar assim vai ter que ser, na prática, as mãos dele, forçando que resolva o caso nem que seja "passando com a cadeira de rodas por cima dela". Depois, Driss acaba ajudando a menina com um ex-namorado.

Em meio aos problemas com um dos irmãos, que vai ser essencial para o desfecho do filme, Philippe terá outra surpresa nada agradável ao saber quem fazia companhia a Magalie, tendo uma reação muito comum à situação apresentada. Os momentos entre os dois garantem outras risadas durante o filme.

Ah, sobre o desfecho, não tratando exatamente dele (um spoiler de potência menor, mas pode pular esta parte se quiser), apresenta-se as diferenças entre as classes francesas mesmo para um caso de relação de trabalho entre amigos, para além de chefe e empregado. O problema não esmorece por conta de um filme que em outros lugares teria um final totalmente feliz.

Das inquietudes iniciais, passamos a ver ambos se transformando pela relação de amizade e preocupação mútua constituída. É claro que aparenta ser para Philippe mais importante que para Driss, mas há um tipo de cena que marca a "evolução" da personagem, trata-se das diferentes formas que ele "pede" para não estacionarem em frente à casa por conta da placa.

Ao mesmo tempo, e o decorrer do filme vai mostrar isso, os dois seguirão intocáveis à sua forma, especialmente o milionário. Há detalhes na vida dele que são responsáveis não só pelas marcas físicas, que não o deixam sequer cometer suicídio, como fala no início, mas principalmente emocionais, a ponto de se comunicar por seis meses apenas por cartas com Eleonora, a quem só irá conhecer pessoalmente após nova e derradeira intervenção de Driss.


A dobradinha entre François Cluzet, demarcando muito bem os problemas físicos do personagem - imaginem o que deve ter sido gravar só podendo mexer o pescoço! -, e Omar Sy é muito boa, essencial para transpor a relação que deve ter ocorrido na realidade entre Philippe Pozzo di Borgo e Abdell Sallan.

Passeio às 4h da manhã, fumar maconha, contratar prostitutas para massagear o ponto erótico que ainda possui (as orelhas), namorar, voar de avião e de parapente. Não ter compaixão significava tratar com menos diferença possível e Driss faz isso muito bem e de forma até que escancarada, passando pelas questões físicas sem nenhum pudor - como dançar no aniversário do amigo - e expondo as diferenças culturais que, neste sentido, acabam sendo o grande diferencial na sua mudança.

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