sábado, 4 de fevereiro de 2012

A poesia social de João Cabral de Melo Neto

Um amigo me perguntou no ano passado se eu gostava de poesias. A minha resposta foi um balançar negativo de cabeça, tendo recebido um "eu imaginava que não". Quando criança, principalmente na escola, até que escrevia uma coisa ou outra, mas fui crescendo e a qualidade dos escritos não acompanhou o processo. Abandonei.

Acho que este processo acaba refletindo, também, um pouco da minha trajetória de (con)formação do meu "eu". Quem me conheceu ou me conhece sabe que na maior parte do tempo sou introspectivo, prefiro observar mais do que falar - desde que o assunto não seja futebol... A minha opção por ler e escrever em prosa, a ponto de escolher Graciliano Ramos e George Orwell para relaxar nas "férias", indica muito da minha personalidade e de como eu gosto de ver o mundo.

Eu continuaria assim por muito tempo se a internet não me tivesse jogado a animação Morte e Vida Severina (Fundação Joaquim Nabuco/TV Escola, 2010). A aspereza do texto de João Cabral de Melo Neto sendo representada primorosamente num audiovisual que me apaixonou sobremaneira. O retirante nordestino que já li em Raquel de Queiroz e Graciliano Ramos sendo me apresentado de uma forma diferente e muito boa. Por mais litorâneo que eu seja, a representação do Nordeste oposta a que eu vivi, mas que me causa muita curiosidade.

Quando vi a animação cheguei a comentar que queria muito ler o livro, mas com biblioteca em recesso de fim de ano e outras coisas já previamente escolhidas para a leitura, não tinha jeito. Em janeiro, para devolver os livros e pegar outros, acabou que mais uma vez não encontrei o orwelliano Dias na Birmânia. Lembrei de João Cabral de Melo Neto.

Rapidamente li a coletânea Morte e Vida Severina e outros poemas para vozes (Nova Fronteira, 2000), em meio a viagens de trem entre São Leopoldo e Porto Alegre. São quatro poemas que conseguem delimitar importantes problemas sociais que, apesar de estarem retratados em Pernambuco, podem muito bem espelhar a formação sociocultural nordestina.

Optarei por não comentar "Morte e Vida Severina", por já tê-lo feito após ter assistido à animação, que em muito me auxiliou para a leitura, destravando neste e noutros poemas a imaginação para esta categoria de composição literária.

"O RIO" (1953)
Para começar, João Cabral faz o percurso do Rio Capibaribe, "de sua nascente à cidade do Recife", percorrendo vários tipos de vegetação e as mais variadas formas de se trabalhar, tendo o rio - quando ele não foi sugado pelo calor do sertão nordestino - como guia.

Tenho uma relação muito especial com o Rio São Francisco e um dos meus desejos é poder fazer seu percurso, ao menos no território alagoano, nalgum dia. Com toda essa preocupação que historicamente marca a região, em ter ou não ter água, com regiões podendo ser alagadas, enquanto outras áreas não veem uma gota dela há anos, acho que rios, lagos, mares e lagoas acabam ajudando a caracterizar a cultura nordestina.

A seguir, dois trechos que destaquei na leitura deste poema, com a análise baseada na "espera pela morte" que acaba sendo viver em áreas sertanejas, e que Severino passa no outro poema como a expectativa que se tem quando não se vive para além dos 30 anos:

"Caruaru e Vertentes
na outra manhã abandonei.
Agora é Surubim,
que fica do lado esquerdo.
A seguir João Alfredo,
que também passa longe e não vejo.
Enquanto na direita
tudo são terras de Limoeiro.
Meu caminho divide,
de nome, as terras que desço.
Entretanto a paisagem,
com tantos nomes, é quase a mesma.
A mesma dor calada,
o mesmo soluço sêco,
mesma morte de coisa
que não apodrece mas seca. (17)

“Vira usinas comer
as terras que iam encontrando;
com grandes canaviais
todas as várzeas ocupando.
O canavial é a boca
com que primeiro vão devorando
matas e capoeiras,
pastos e cercados;
com que devoram a terra
onde um homem plantou seu roçado;
depois os poucos metros
onde ele plantou sua casa;
depois o pouco espaço
de que precisa um homem sentado;
depois os sete palmos
onde ele vai ser enterrado” (25).


"DOIS PARLAMENTOS" (1958-1960)
O poema seguinte tem o destaque para ser declamado com "ritmo de senador; sotaque sulista" e possui como subtítulo "Congresso do Polígono das Secas". O Nordeste também foi caracterizado pela presença de coronéis, donos de cidades inteiras, definidor da política e da economia locais, ganhando o título mais por medo que por respeito.

Os filhos dos coronéis podem fugir de cidade em cidade por conta da seca, sem passar por grandes infortúnios, quando não vão estudar no "sul" do país. Curiosamente, enquanto capitania hereditária, a área de Pernambuco foi uma das poucas a conseguir prosperar, vencer a falta de preocupação do reino português na terra brasileira - que mandava o que tinha de pior para tomar conta.

Enquanto São Vicente tornou futuramente São Paulo o centro financeiro do país, Pernambuco lutou junto aos holandeses, brigou com o reino a ponto de perder o território que atualmente é Alagoas, mas preservou uma identidade cultural vista em poucos lugares do país. Financeiramente, é um dos destaques nordestinos, mas não conseguiu desenvolver a ponto de diminuir os problemas sócio-naturais presentes em outros cantos da região.

Neste poema, achei curioso que há uma numeração que não é seguida em cada parágrafo. Não sou estudioso da área, portanto perdoem-me um possível equívoco, mas esses números acabam definindo formas de diálogos e de escrita do poema. Acredito que, não necessariamente, uma ordem que deva ser seguida, por mais que assim possa.

Seguem dois trechos do diálogo entre congressistas que por não nascerem naquele chão não chegam a desdenhar do destino das pessoas, que ainda reflete a realidade local. Enquanto pessoas sofrem sem casa ou tendo que perder entes queridos por conta da falta de recursos, há quem more em mansões ou apartamentos em frente à praia...

"- Nestes cemitérios gerais
os mortos não variam nada.
- É como se morrendo
nascessem de uma raça.
- Todos estes mortos parece
que são irmãos, é o mesmo porte.
- Se não da mesma mãe,
irmãos da mesma morte.
- E mais ainda: que irmãos gêmeos,
do molde igual do mesmo ovário.
- Concebidos durante
a mesma seca-parto.
- Todos filhos da morte-mãe,
ou mãe-morte, que é mais exato.
- De qualquer forma, todos,
gêmeos, e morte-natos" (87).

"- O cassaco de engenho
quando o carregam, morto:
- É um caixão vazio
metido dentro do outro:
- E morte de vazio
a que carrega dentro:
- E como é de vazio,
ei-lo que não tem dentros.
- Do caixão alugado
nem chega a ser miolo:
- Pois como ele é vazio,
se muito, será forro.
- O enterro do cassaco
é o enterro de um coco:
- Uns poucos envoltórios
em volta do centro oco” (100).

"AUTO DO FRADE" (1984)
O "Auto do frade" conta o percurso da saída da prisão até o enforcamento de Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca, que foi condenado à morte em 1825 por estar envolvido com a Confederação do Equador, tendo "desrespeitado a nação".

Muito bem descrito, com diálogos entre as pessoas nas ruas que viam-no passar, de membros da Igreja Católica mais preocupados em ter seu "lugar" respeitado no acompanhamento, de policiais e com o anúncio o tempo inteiro do que estava acontecendo pelo mineirinho, demarcando momentos importantes. Frei Caneca acaba estabelecendo alguns monólogos, que acabam por refletir a condição de quem conhece aquele chão, aquelas pessoas que o veem, mas não sabe o porquê de fazerem aquilo.

O poema conta muito bem a espetacularização em torno da morte dele, com as pessoas se amontoando nas ruas, bem limpas antes disso, como se fosse uma festa da Igreja ou o carnaval. A maioria esperava que viessem uma ordem de navio do Império que impedisse tamanha sanção. 


"- Mas será somente por piedade
que alugam balcões no trajeto?
- Talvez seja até por piedade:
mas no Carnaval têm os mesmos.
- A procissão é um espetáculo
como o Carnaval mais aceso.
- Não há música, é bem verdade,
ainda não se inventou o frevo.
- Mas no cortejo que assistimos
há mais luxo que respeito.
- Querem ver o réu, mas de cima,
é a atração pelo que faz medo” (116).


A demora para a execução acaba por gerar ainda mais dúvidas sobre o assunto, Primeiro, ninguém aceita ser o carrasco, por temer uma punição divina, que se apresenta pior que a morte. Nem o pior bandido da cidade, "que trucidou em Madalena/ pai, mãe, filho, mais quatro escravos/ e um bebê de dias apenas". Em troca, teria o crime perdoado e poderia sair livremente da cadeia - em absurdos da justiça brasileira que veem há muito tempo...

A solução é que vários militares dividam entre si uma possível culpa futura: fuzilamento. No fim, João Cabral relata o abandono maior daquele ser religioso em frente à Basílica do Carmo, o seu corpo sendo arrastado para dentro.

Referência

MELO NETO, João Cabral de. Mortes e vida severina e outros poemas para vocês. 4.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

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