quinta-feira, 2 de julho de 2009

Angústia

Já tinha lido outros três livros de Graciliano Ramos. Dois romances, São Bernardo e Vidas Secas, e um livro de contos, Insônia – o qual fui instigado a ler devido a uma encenação da Cia. da Meia-Noite, de mesmo título. Adquiri Angústia para continuar a trajetória da obra de um dos maiores romancistas regionalistas do país.

Todos já devem ter lido e ouvido, especialmente na época em que São Bernardo era leitura “obrigatória” para o vestibular, que o texto de Graciliano Ramos era seco, bem parecido com os cenários que descrevia. Alguns dizem até que ele era tão criterioso que a perfeição seria escrever algo sem palavras – o sonho dos apologéticos do jornalismo televisivo.

Exageros à parte, esse livro teria que garantir através das palavras o título de um sentimento tão profundo e agonizante. Como descrever em poucas não só as situações conflituosas, mas transmitir as sensações causadas por algo que beira a loucura?

Para começar a fazer isso, nada melhor que utilizar de um autor em primeira pessoa, como o personagem que nos guiaria através de seus relatos, suas hesitações, devaneios e medos. Luís da Silva, sujeito criado em fazenda no interior, é o nosso anfitrião. Ele, que escreve o livro após os trinta dias “das visões que [...] perseguiam naquelas noites compridas” (05). E isto num cenário que conhecemos, já que o presente se desenvolve em Maceió, com a Praça dos Martírios, Rua do Comércio, Farol, Levada e Bebedouro.

PERSONAGENS Aos poucos as coisas e as personagens vão aparecendo, ou melhor, conseguimos ligar as características pessoais soltas ao longo do texto, como se formassem um quebra-cabeça. Afinal, quem foi que disse que adentrar no ser humano era algo tão fácil? Se fosse assim não era preciso que os homens continuassem a se estudar, numa autorreferencialidade cotidiana.

É nesse ritmo que descobrimos a paixão pela jovem vizinha da esquerda, afinal nunca costumava a passar pela calçada do lado oposto. A ruiva que tanto o irritava pelas suas brincadeiras infantis no quintal, seu rosto todo maquilado, e que depois virou sua amiga, que conversava com Luís enquanto ele lia romances tolos, mesmo que com toda agonia de saber que lia um lixo. Ah, e como ela gostava de romances tolos e invejava a espanhola Mercedes!

O presente por certas vezes pára para que ele conte um pouco da sua história na fazenda, o declínio da sua família e a decrepitude dos seus antecessores, que do sobrenome de Trajano Cavalcanti Aquino e Silva, seu avô, ficou só com o último. Lembranças de apenas uma serviçal e da morte dos familiares.

Dois nomes sempre rodeiam a sua mente, transtornando-a de forma a não permitir que faça as mais triviais atividades, como escrever um artigo encomendado. De Julião Tavares só resta a raiva, do sujeito de pai advogado e que entrara na sua vida sem pedir licença, com a desculpa de um esbarrão; alguém de extrema-direita, que pretendia ver os militares no poder.

Já de Marina, cujo só o nome sabíamos, vinha um saudosismo, a paixão arrependida. Só depois de dezenas de páginas é que descobrimos que ela é justamente a sua vizinha chata, a qual ficara tão apaixonado que chega a fazer o pedido de casamento, onde aumentam suas angústias. Um ciúme à lá Bentinho que desta vez realmente gera um fruto proibido e transtornam o simples funcionário público.

Outros personagens vão e vem ao longo do livro. A vizinhança é caracterizada além da espanhola Mercedes, havia o Lobisomem e suas três filhas na casa de frente, quatro figuras estranhas e que geravam inúmeros boatos – como o que orientou o apelido; a outra vizinha, Dona Rosália, que proclamava a moral e os bons costumes, mas que quando o marido caixeiro chegava não deixava ninguém dormir; além dos pais de Marina, seu Ramalho e dona Adélia, um resmungão e outra que abaixa a cabeça a todos.

Quem entrava em sua casa eram Pimentel, Moisés e Seu Ivo, para trazer inúmeras discussões a respeita da sociedade. Aliás, seu Ivo estava mesmo interessado em comer qualquer coisa mesmo, vivia pedindo nas casas. E foi justamente o pedinte que deu a Luís o objeto da ação que o fez ficar tanto tempo na cama.

SOCIAL Se em São Bernardo temos a imagem de Madalena como a responsável de no meio do triunfo burguês conscientizar, de certa forma, os trabalhadores, Moisés é o que traz a característica ambígua em Angústia, personagem que o protagonista gostava de discordar só para ouvi-lo.

Filho de um judeu proprietário de uma “venda”, traz em sua origem um estereótipo formado: judeu como o sujeito mesquinho. Porém, Graciliano dá justamente a este personagem o pensamento revolucionário e os textos contestatórios à ordem vigente, como querendo provar o processo dialético, de uma contra-força a surgir dentro do atual momento social.

Apenas quase dez anos depois é que Ramos entrará no Partido Comunista, pouco tempo legalizado, e que será o motivo de sua prisão. Num dos trechos de Angústia, ele traz uma passagem sobre um muro de uma localidade pobre de Maceió, que nos faz relembrar sua ideologia:

“‘Proletários, uni-vos’. Isto era escrito sem vírgula e sem traço, a piche. Que importavam a vírgula e o traço? O conselho estava dado sem eles, numa letra que aumentava e diminuía. Talvez a datilógrafa dos olhos agateados morasse por ali, num dos becos que iam ter à rua suja. Escondida num quarto escuro, a datilógrafa dos olhos agateados ocupava-se em bater na máquina um boletim subversivo. Um irmão decoraria dele a frase mais incendiária, que seria copiada a carvão no muro de uma igreja de arrabalde”. (137).

FINAL O final do livro traz todas as angústia chegando ao ápice de suas possibilidades, ao ponto de criar um ambiente caseiro de loucura. Assim que o livro acaba, a grande sensação é de que aquilo não é um final, o que será que houve com Luís da Silva endoideceu de vez? A resposta está no começo, quando ele se “recupera”.

Graciliano Ramos nos mostra mais uma vez sua grande capacidade de utilizar as palavras, numa linguagem tão bruta quanto os seus personagens, num ritmo o qual é impossível de administrar, logo vivemos a situação transcrita.

RAMOS, Graciliano. Angústia. São Paulo: Círculo do Livro, s/a, 208pp. (Original de 1936).

Um comentário:

  1. Só li São Bernardo dele. Boa resenha, só tenho uma ressalva. Vc precisa avisar no começo que tem spoiler, hehehehehe

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