Duas coisas me fizeram ter tanta vontade em ver "No", dirigido por Pablo Larraín: a história do plebiscito que ajudou a tirar o ditador Augusto Pinochet do poder; e a utilização das câmeras U-Matique 4:3, padrão da década de 1980, num filme do século XXI. Foram mais de quatro meses esperando a oportunidade, de ter o filme num cinema próximo e eu tendo condições de assisti-lo. Não foi num cinema, mas consegui vê-lo.
Comentava com um amigo, dias atrás, que desde que cheguei em Maceió não havia conseguido ver um filme completo, fosse pela TV, pelo computador e muito menos no cinema - neste caso, muito por conta do fechamento do Centro Cultural SESI. O último havia sido Anna Karenina. Mesmo "No", que queria ver em Porto Alegre, mas não foi aos cinemas mais centrais, chegou a ir à Sessão de Arte do Centerplex do Maceió Shopping, mas às 11h e com preço de sábado.
Até que vi na agenda cultural de um dos jornais locais as informações sobre a segunda edição do "Festival Cinema Pela Verdade" e, dentre os 4 filmes a serem exibidos e debatidos, estava o primeiro filme chileno a ser escolhido pela Academia de Hollywood enquanto candidato ao Oscar. Vi que seria numa terça-feira à noite, dia que até então não tinha compromisso formal. O local: a Universidade Federal de Alagoas, que não pisava desde o dia 6 de janeiro de 2011, quando colei grau.
UM FILME SOBRE A CAMPANHA
Larraín havia dirigido outros dois filmes que se situam no período da ditadura militar no Chile (1973-1988), "Tony Manero" e "Post-Mortem", sempre de forma crítica, apesar de ser filho de pais de direita, nas relações político-partidárias. Segundo o diretor, a ditadura foi o pior tempo para os artistas, só isso justificaria as críticas apontadas por alguém que também trabalha com publicidade, cujas contradições são centrais para o desenvolvimento de "No". O roteiro foi escrito por Pedro Peirano, baseado na peça teatral "El plebiscito", ainda inédita, de António Skarmeta - cuja uma das transcrições para tela é "Il Postino", comentada aqui.
Ouvi falar bastante sobre o período ditatorial do Chile, inclusive na perspectiva de grande abertura dos mercados - inclusive o comunicacional -, mas nunca soube como ele terminou. Até antes de ler uma resenha sobre este filme, estava submerso na ignorância que somos acostumados, de só ver em escolas e faculdades, no geral, informações sobre as nações ocidentais ricas.
Explicando para quem, que nem eu, não conhecia a história. Como muitos devem saber, os golpes militares na América Latina tiveram um grande incentivo dos Estados Unidos, começando com o do Brasil, em 1964. A partir dos anos 1980, a aplicação de políticas neoliberais a partir dos EUA e do Reino Unido força com que se tenha um modelo que permita às empresas atuarem livremente e, consequentemente, uma nova abertura para o consumo, agora em escala internacional, fazendo as pressões das nações desenvolvidas e de órgãos transnacionais (como o FMI) para o fim dos governos golpistas.
Em 1988, Pinochet e sua equipe resolvem criar um plebiscito popular para escolher se ele poderia ficar por mais 8 anos no cargo. Algo que já estava na Constituição aprovada pelos militares em 1980. Ele teria 15 minutos e os demais 17 partidos outros 15 minutos para, numa campanha eleitoral de 27 dias, convencer a população.
O filme mostra, com elementos ficcionais, a formação da campanha do "No" a partir do publicitário Reneé Saavedra (Gael García Bernal), político forçado ao exílio com a família. Ele voltara ao país e já conseguia muito dinheiro para trabalhar, tendo casa e carro próprios. Por conta de amigos, acaba topando fazer a campanha, tendo em vista, inclusive, que a ex-mulher, Verônica (Antonia Zegers) era militante contra os militares, aparecendo em rápidos momentos para ver o filho, Simón.
O chefe de Reneé na empresa de publicidade, Lucho Guzmán (Alfredo Castro), é pinochetista convicto e o tenta convencer das mais diversas formas a não entrar na campanha contrária, propondo, inclusive, uma sociedade. Depois, com essa opção rechaçada, chega a fazer ameaças. Ainda assim, não demite o (bom) profissional e ainda o ajuda em determinado momento.
"O povo chileno pensa no futuro"
O filme abre, intermedeia e fecha com a frase deste tópico, que ainda tem como início algo como: "o que você verão está inserido no atual contexto social". Para quem estuda a Indústria Cultural, é um prato cheio para análise, afinal, mostra como a publicidade, que é posta como a ferramenta para vender qualquer produto, pode vender ideias sociais importantíssimas.
O longa é permeado por discussões de como "a campanha parece propaganda de refrigerante", que "não mostra as atrocidades cometidas", etc. que são expostas por Verônica, mas também pelo diretor audiovisual, ligado à luta de esquerda, Fernando Arancibia (Néstor Cantillana), que faz questão de entrar em debates pesados.
De um lado, Reneé tem a contradição com o chefe, que depois do início da campanha na TV assume a direção do "Sim" e faz coisas vergonhosas, diga-se de passagem. Do outro, pressão de uma visão de esquerda que claramente não acreditava numa vitória no plebiscito por ser cria do ditador, montado a partir de seus desejos.
Vemos como a linguagem publicitária, de que não há argumentos contra a alegria, vence na equipe de produção, com alguns relatos e cenas mais fortes para agradar o posicionamento mais radical, por mais que "não venda", seja "feio". Ao longo do tempo, eles conseguem desenvolver um material que faça com que as pessoas com medo de votar o façam. Isso correspondendo a tipos totalmente diferentes: pessoas acima dos 60 anos e jovens, ambos não acreditando que aquilo possa ser alterado.
Há várias semelhanças com as campanhas políticas recentes, com pessoas sorrindo o tempo todo, jingles e tudo o mais. Incrível que conseguiram convencer tantos a fazer aquilo para uma campanha que necessitava apresentar um traço radical, mas inspirador de mudança. Foi colocado após o filme, é serve como parâmetro para as mudanças nas campanhas presidenciais petistas, de 1989 a 2002, especialmente - por mais que o futuro também não tenha sido tão nobre, já que foram necessárias articulações político-econômicas por aqui.
Partindo para a estética, "No" tem cara dos anos 1980 e isso fica bem interessante quanto há a transposição para as imagens de arquivo, fazendo com que não nos pareça tão diferente, por mais que haja atores sendo mostrados no antes de gravar para a campanha. Confesso que não achei a quantidade de arquivos exagerada, mas também tenho uma motivação política para gostar de ver o material.
Ainda assim, é importante frisar que há um exagero quanto ao tratamento da imagem, nesta tentativa de reproduzir a (falta de) qualidade do passado. Desfoques e granulações são muito visíveis, ficando claro que a tentativa era expor isso. Assim como, há cortes, em meu ver de amador, que ficaram confusos. Isso aparece, justamente, quando a qualidade da imagem é provocativamente tornada dúbia. Deu-me a parecer que havia problemas de continuidade.
Há outras questões que, numa nova recepção do filme, podem ficam mais expostas. Destaco também que apesar de estar envolvido com a história, há a história de ficção, da separação/possível volta do publicitário com a mãe de seu filho que é desenvolvida em paralelo que pode desagradar. Além disso, momentos em que as ameaças dos militares parecem que vão aparecer com maior força parecem depois não passar de um susto, passando rápido para o período seguinte.
Mesmo assim, vale a pena conferir o filme chileno, ainda mais que nós brasileiros não estamos acostumados com as histórias dos países vizinhos, os mesmos que souberam olhar mais para o passado sombrio, punindo alguns dos responsáveis, ao contrário de nós.
Esteticamente, em meio a tantas produções em 3D, é interessante ver uma aposta de cinema "retrô" para além das exibições em preto e branco, com mais momentos de câmera na mão. Como também, a questão da utilização de imagens reais, de arquivo, para alimentar uma produção que, apesar de baseada na campanha real, tem a ficção como pano de fundo. Ou seja, a campanha do plebiscito existiu, há imagens do período, mas "No" não é um documentário, não precisando seguir fielmente a história.
PRÊMIOS E NO+
"No" foi o primeiro filme chileno a ser selecionado ao Oscar, perdendo o prêmio de melhor produção estrangeira para (o excepcional) Amour, vencendo os seguintes prêmios: melhor filme (2012) na quinzena de realizadores do Festival de Cannes; Prêmio Pedro Sena (2012) como melhor longa-metragem, junto a "Mi último round"; primeiro prêmio Coral ao melhor longa de ficção no Festival de Havana (2012); e o Prêmio Altazor (2013) por melhor direção.
Devido a uma crítica duríssima - "o Chile não precisava desse filme" - que ouvi num dos comentários após a exibição de "No" fui dar uma olhada no site oficial. Uma das coisas interessantes por lá é "La maquina de No", onde você pode produzir e imprimir algo "a qué le quieres dicer no". No filme, a campanha pede para as pessoas riscarem na vertical o traço, formando um "No+".
Dentre os mais baixados estão, respectivamente: Hinspeter, o fundador do partido direitista Renovação Nacional; "Guattón Labbe en Providencia", prefeito da comuna de Providencia, bairro nobre e centro financeiro de Santiago; e a líder da associação nacional dos estudantes (2010-2011), Camila Vallejos, que ficou famosa no mundo após as manifestações por educação pública. (Inclusive, se alguém souber o que ela faz com tantas pessoas "não a querendo mais" ao lado das figuras que ponteiam, por favor, expliquem-me).
CINEMA PELA VERDADE
A exibição de "No" consta na programação da segunda edição do Festival Cinema Pela Verdade, realizado pelo Instituto Cultura em Movimento (ICEM), em parceria com o Ministério da Justiça, que foi contemplado pelo edital "Marcos da Memória", da Comissão da Anistia, que visa a promoção de eventos e projetos com foco no período da ditadura cívico-militar no Brasil, algo muito importante para entendermos a nossa história.
No ano passado foram realizadas 201 sessões, com 5 filmes brasileiros exibidos em 90 universidades de todas as unidades da Federação, com um público de 20.401 pessoas. Neste ano, o festival também exibe filmes internacionais, seguindo a gratuidade os debates após as sessões, com acadêmicos, pesquisadores, ex-presos políticos, pessoas ligadas a movimentos sociais, culturais e de direitos humanos, além da participação de diretores ou da equipe de produção dos filmes exibidos.
Em 2013, além de "No", os outros 3 filmes escolhidos foram:
- Documentário "Eu me lembro" (Luiz Fernando Lobo, 2012), que acompanhou os cinco anos da Caravana da Anistia;
- O argentino "Infância Clandestina" (Benjamin Ávila, 2011), que já comentei neste blog;
- "Mariguella" (Isa Grinspum Ferraz, 2012), que conta a história do "maior inimigo da ditadura militar no Brasil", autor do Manuela do Guerrilheiro Urbano.
Para quem é de Maceió, a exibição ocorre no Auditório da Reitoria da Universidade Federal de Alagoas, a partir das 19h. No dia 15 de julho, será "Eu me Lembro", a ser debatido pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, Judson Cabral (PT), e pelo presidente da Comissão da Verdade dos Jornalistas em Alagoas, Edberto Ticianeli. No dia 16, será a vez de "Infância Clandestina", debatido pela cientista política Luciana Santana e pela historiadora Ana Paula Palamartchuk.
Nenhum comentário:
Postar um comentário