No dia 16 de setembro ocorreu o terceiro dos debates com candidatos a presidente da República. Desta vez, o local foi o Santuário de Aparecida (SP), sede da TV Aparecida, que transmitiu em rede com outros “meios de comunicação de inspiração católica”. Dentre os temas abordados, o marco regulatório da comunicação voltou a ser colocado, novamente por quem representava uma concessionária de TV.
Organizado pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entidade que participou de vários momentos importantes do país e com opiniões interessantes sobre algumas questões relativas ao desenvolvimento social, o debate teve um modelo diferente dos realizados por Band e SBT. As perguntas feitas por jornalistas e por bispos/arcebispos da Igreja Católica seguiam determinados temas que refletiram a contradição entre avanços sociais e dogmas.
O problema no modelo apresentado é que só havia tempo para uma resposta sobre o tema, sem qualquer comentário por parte de outro candidato, gerando a sensação de que tal temática poderia ter uma resposta mais interessante por parte de outra pessoa não sorteada. Foi assim que os três candidatos que lideram as pesquisas (Dilma Rousseff, Marina Silva e Aécio Neves) escaparam de perguntas mais problemáticas para o espaço ocupado.
Um dos temas que gostaria de ter ouvido resposta de outra candidata foi a comunicação. No segundo bloco, dedicado a perguntas de pessoas ligadas à Igreja Católica, o tema foi um dos selecionados para o debate. A pergunta, gravada, foi realizada pelo arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Campo Grande, bispo dom Dimas Lara Barbosa: “Existe um projeto de lei de iniciativa popular pela democratização da comunicação que pretende, entre outras coisas, proibir a concessão de radiodifusão a qualquer confissão religiosa. Com isso, todas as emissoras que nos transmitem nesse momento deixariam de existir. Qual é a sua posição sobre este ponto concreto do projeto de lei?”
Os credos religiosos e a concessão
O candidato selecionado foi o Pastor Everaldo (PSC), que, em meio à defesa da total liberdade do mercado que marca a sua candidatura, reafirmou ser contra qualquer marco regulatório do setor, chegando a citar que só podemos conhecer as “notícias que estão acontecendo todo dia” é porque elas estão no noticiário. Mal querendo saber o candidato de tantas vozes que são silenciadas em cada matéria do noticiário dos grandes grupos comunicacionais, com liberdade maior que em qualquer país do mundo, incluindo os Estados Unidos, provável modelo para seu programa de governo, que possui a FCC (Comissão Federal de Comunicações, em tradução livre) como agência reguladora das comunicações.
Voltando à questão do arcebispo dom Dimas Lara Barbosa, há duas coisas a se apontar. A primeira é que não se apresenta uma crítica à proposta de lei, destacada na pergunta como sendo algo oriundo de proposta popular. O que se foca é no ponto específico relativo à proibição de outorga a igrejas ou a instituições ligadas a credos religiosas, ao contrário do que ocorrera no caso do debate da Band (ver “
Controle social da mídia aparece na campanha“).
Por mais que, infelizmente, a interpretação tenha se dado para a crítica a um novo marco regulatório – muito pelo candidato sorteado –, a CNBB participou do lançamento do projeto, em agosto do ano passado, representada justamente por Dom Dimas (ver “
Pluralidade e unidade marcam o lançamento do projeto de iniciativa popular“). À época, ele afirmou: “O mais importante é o processo que está sendo disparado, no sentido de suscitar as discussões, de modo que o nosso povo assuma nas mãos as rédeas dos destinos. O que é de todos deve ser conduzido por todos.”
Partamos para a questão específica, sobre credos religiosos possuírem ou não concessão. O projeto de iniciativa popular em vários momentos se preocupa em evitar quaisquer formas de proselitismo político ou religioso através de uma concessão que é pública – espectro eletromagnético do país, espaço restrito e que, portanto, necessita de controle. O tema em si da pergunta aparece no quarto parágrafo do terceiro capítulo do Artigo 13: “É vedada a outorga de emissoras de rádio ou televisão a igrejas ou instituições religiosas e a partidos políticos.”
Outorga sem licitação
Isso ocorre pela prática construída ao longo dos anos de demora à dificuldade de fundações a conseguirem concessões de rádios e TVs comunitárias e educativas. Com maior facilidade caso estejam ligadas a grupos políticos ou religiosos que podem usar suas relações de poder. Lembrando ainda que, nos casos das educativas, não se é necessário passar por processo de licitação, por mais que seja um espaço público.
Isto, inclusive, foi tema de ação civil pública por parte do Ministério Público Federal na 1ª Vara Federal em Guaratinguetá, em 2011. O pedido de ajuizamento foi para que fossem declarados nulos os processos que culminaram com as concessões às TVs
Canção Nova(Fundação João Paulo II) e
Aparecida (Fundação Nossa Senhora de Aparecida), ambas com sede informada em Cachoeira Paulista-SP, realizados em 1997 e 2001, respectivamente.
O procurador da República Adjame Alexandre Gonçalves Oliveira, autor de ambas as ações, baseou-se no artigo 175 da Constituição Federal, que diz que a concessão de serviços de natureza pública requer obrigatoriamente licitação; enquanto o Governo usa o artigo 14 do Decreto Lei 236/67, que trata dos canais de televisão educativos. Algo que, inclusive, demonstra o problema da falta de renovação da regulação do setor, até porque 1967 marca a última reforma/acréscimo ao Código Brasileiro de Telecomunicações, promulgado em 1962, há distantes cinco décadas.
Para o MPF, somente a licitação dos canais educativos permitiria à administração pública selecionar a entidade mais capacitada tecnicamente e que apresente o melhor projeto educacional. Gonçalves afirma que o pedido de cassação das concessões não teria nenhum vínculo com o tipo de conteúdo transmitido pelas emissoras, mas com o fato de terem sido outorgadas sem licitação, “o que põe em xeque a utilização democrática e transparente desse meio de comunicação, que é eminentemente público”.
Regulação não é censura
À época, o Estado de S.Paulo comentou o processo, destacando também que, segundo o MPF, mesmo no caso de se considerar apenas o Decreto Lei 236/67, a escolha deveria ocorrer de acordo com a melhor proposta de conteúdo educativo. Como ambas as emissoras veiculam, dentre outras coisas, missas, terços e programas religiosos, o conteúdo se deslocaria da proposta deste tipo de concessão. De acordo com buscas pela internet, o processo seguia tramitando no Tribunal Regional Federal.
Voltando às propostas para uma lei de uma mídia democrática, há uma segunda preocupação, talvez até um pouco maior, dada a conjuntura atual, que se refere à compra de horários por grupos religiosos neopentecostais. Pegando um caso recente, a Rede CNT (Central Nacional de Televisão), com sede em Curitiba-PR, alugou/arrendou, no primeiro semestre, 22 horas de sua programação diária para a Igreja Universal do Reino de Deus – cujo grupo é proprietário da Rede Record de Televisão, ainda que só use (oficialmente, também comprando) a faixa da madrugada. Está na lei da radiodifusão o limite para 25% da programação para a publicidade. Um grupo compra o equivalente a 83% disto, e este não é um caso isolado, refletindo mais um dos vários problemas na regulação do setor – que se trata da verificação do funcionamento da legislação sobre determinado setor.
A proposta de parágrafo único no artigo 22 do Capítulo V do projeto propõe o seguinte:
“A regulamentação estabelecerá limites de tempo e demais regras para veiculação de programas visando propaganda de partido político ou propagação de fé religiosa, respeitando os princípios de pluralidade, diversidade e direitos humanos, e a proibição a qualquer tipo de manifestação de intolerância, nos termos da Constituição, desta lei e outras leis relacionadas”.
Ou seja, ao contrário do que se coloca como interpretação por parte de quem é concessionário de radiodifusão, não há uma censura contra este tipo de programação, mas que se tenha um limite de tempo e, especialmente, regras para evitar o proselitismo religioso e uma série de intolerâncias que são proferidas por conta disso.
Destaco isso, inclusive, porque quando se pensa numa estrutura midiática mais democrática não se trata de substituir um autoritarismo por outro. Quer dizer, se agora temos mais acesso ao conteúdo escolhido por quem tem poder de alcançar uma concessão e recursos para manter produtos e divulgação de qualidade, não é acabando com tudo isso e tendo só programas com discurso contra hegemônicos que tudo se resolverá. Levando em consideração o sistema democrático vigente – e suas inúmeras contradições ligadas ao capitalismo –, só a aplicação da divisão igualitária entre meios públicos, estatais e privados já apresentaria uma diferença significativa, mesmo considerando a necessidade de se delimitar o que seriam mídias públicas e estatais quando se vê como foi apropriado por grupos políticos e religiosos o conceito de educativo.
A existência de um marco regulatório se apoia na necessidade de renovação das normas legais sobre a radiodifusão, aplicando novas interpretações até mesmo pelo imenso avanço tecnológico de 52 anos após a promulgação do CBT; mas também da aplicabilidade e regulamentação do que consta na Carta Magna deste país, em que quatro dos cinco artigos do capítulo dedicado à Comunicação Social ainda não foram regulamentados. Por fim, regulação não é censura, mas a verificação do funcionamento da legislação sobre determinador setor econômico, essa importância sendo aumentada se o mercado funciona a partir de uma concessão pública.
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