segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Notícias do Planalto: a imprensa e Fernando Collor


Quando recebi em casa este livro, surpreendi-me pelo tamanho: mais de 700 páginas. E o que era para ser uma das referências para um artigo científico se tornou uma leitura longa e espaçada, de acordo com as folgas de exigências acadêmicas. Porém, cada vez que o pegava não dava vontade de parar de lê-lo.

Notícias do Planalto: a imprensa e Fernando Collor, escrito pelo jornalista Mário Sérgio Conti, atualmente diretor da revista piauí - a quem já critiquei aqui por uma "entrevista" com o então presidente Lula, pode ser considerada uma enciclopédia que conta a história dos maiores meios de comunicação do país através dos seus principais personagens, dos seus proprietários aos jornalistas envolvidos na editoria de política; da família de um político aos empregados do Governo federal. Ponto a ponto, Conti vai tecendo uma teia que leva às pessoas àquela ação descrita em determinado ponto no livro.

Neste registro histórico podemos perceber como as relações pessoais, a identidade política com o governo, numa época em que não era “pecado” deixar a opinião política evidente, ou o interesse econômico das empresas de comunicação influenciam a cobertura política da grande imprensa. Especialmente por se tratar de um verdadeiro fenômeno midiático como foi Fernando Collor de Mello, de governador de um dos Estados mais pobres do país foi alçado ao maior posto político da República no primeiro processo de eleições democráticas pós-Ditadura Militar.

“Ex-repórter e herdeiro de um grupo de comunicações, Fernando Collor tornou-se reconhecido do eleitorado por meio de jornais, revistas e emissoras de televisão – os mesmos órgãos de imprensa cujas reportagens serviram de estopim para o movimento que veio tirá-lo da Presidência” (p. 9).

Conti faz questão de destacar ainda na “Apresentação” do livro que “a cobertura política de um órgão de imprensa é produto de sua história. A maneira como ele apura, apresenta e analisa as notícias é o resultado de uma tradição, retrabalhada a cada dia, a cada nova edição” (p. 9).

OPINIÃO DO EMPRESÁRIO
Ao longo dessa obra, ele conta a história de formação dos grupos empresarias de comunicação a partir de seus proprietários e de crises vivenciadas, sejam elas financeiras ou políticas, pudemos perceber que em maior ou menor grau, as relações políticas sempre influenciaram de alguma forma os meios de comunicação, cujo objetivo era agradar aos interesses dos seus proprietários. As mudanças na direção das redações apontavam para um controle maior no conteúdo, como na seguinte alteração exercida no jornal da família Marinho:

“Lentamente, O Globo mudou. Evandro Carlos de Andrade limpou a redação […] Organizou as faixas salariais, deu aumentos e trouxe gente nova para a redação. Seu objetivo era fazer um jornal que desse todas as notícias e uma só opinião, a do dono” (p. 161).

No período de ditadura militar, por exemplo, a maioria das redações do país era formada por jornalistas que eram contra o regime. Mesmo no período em foco no livro, o processo eleitoral de 1989, a maioria deles apoiavam o candidato mais ligado à esquerda, o ex-líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva, quando não eram até mesmo filiados ao Partido dos Trabalhadores.

Outro ponto interessante que podemos ressaltar a partir da leitura de Notícias do Planalto é que em 1989 havia um posicionamento das empresas quanto às posições político-eleitorais. O processo de questionamentos quanto ao polêmico resumo do debate do segundo turno mostrado pelo Jornal Nacional, assunto que ainda trataremos aqui, tem como base o apoio claro de Roberto Marinho à campanha collorida, como consta neste trecho:

“Um mês depois do discurso de Covas, Roberto Marinho tinha um candidato: Fernando Collor. Numa entrevista a Neri Vitor Eich, da Folha de S. Paulo, declarou não acreditar que Covas tivesse 'condições e se eleger' e julgou Collor 'mais assentado, mais ponderado e mais equilibrado, com suas boas ideias privatistas', do que os outros concorrentes. Se o candidato continuasse nesse caminho, acrescentou, 'vou influir o máximo a favor dele'. Dito e feito” (p. 167-168).

Este ano tivemos uma experiência que assustou, de forma positiva, os pesquisadores da comunicação brasileiros. O Estado de S. Paulo publicou um editorial em que defendia claramente a campanha do tucano José Serra, em detrimento de Dilma Rousseff e a continuidade da coalizão comandada pelo PT. Naquela época não foi estranho, veja abaixo trechos publicados no livro:

“Na quinta-feira, ainda, o Estado de S. Paulo dedicou o seu primeiro editorial, o do alto da página 3, às eleições, mas não se referiu a Miriam Cordeiro. Intitulado 'O perigo dos radicais', apresentou Lula 'como prisioneiro das minorias anticonstitucionais que o PT abriga, afora os albaneses que se reúnem no PcdoB. […] No fecho do editorial, o jornal da família Mesquita afirmou: 'O programa do PT transformará o Brasil num país fora do mundo moderno; a ação deletéria dos grupos anticonstitucionais, fazendo pressão sobre o temperamento fraco do sr. Luis Inácio Lula da Silva, fará da democracia um simulacro, como Stalin os sacrificou na Rússia, Castro em Cuba e Mao na China. Por tudo isso, a posição do bom senso e do patriotismo recomenda que se vote no respeito à Constituição, que hoje é encarnado pelo sr. Fernando Collor de Mello” (p. 244-245).

DEBATE
O livro conta em detalhes a briga nos bastidores entre o então responsável pelo jornalismo da emissora, Armando Nogueira e Roberto Marinho, com outros nomes de direção importantes no meio. O debate acabou sendo uma prova de que Nogueira não tinha o controle da situação.

Assunto tão debatido, inclusive no livro de 40 anos do próprio Jornal Nacional, o livro de Conti, publicado em 1998, traz a informação de que a Rede Globo teria a preocupação de manter as mesmas oportunidades para os dois candidatos no segundo turno. Assim, desde a quantidade de aparições em matérias do jornalismo da emissora até o tempo quando os dois tivessem num debate deveria ser bem próximo, quando não iguais.

Os debates - foram dois no segundo turno, sendo o último a poucos dias da votação - foram realizados por um pool de emissoras. No dia seguinte, a Globo fazia um resumo do melhor que tinha ocorrido nele. O segundo seria essencial para uma campanha em que Lula estava cada vez mais próximo, segundo as pesquisas, do candidato do PRN. Todos foram unânimes que o candidato petista se enrolara muito na hora das discussões, mas também houve unanimidade, até mesmo dentro da emissora carioca, que o resumo do JN fora exageradamente favorável a Collor.

Conti fez a seguinte observação sobre o assunto:

“Na condensação do Jornal Nacional, Lula falou sete vezes. Collor, oito: teve direito a uma fala a mais que o adversário. No total, Lula falou 2 min22s e Collor, 3min 34s: 1 min 12s a mais que o candidato do PT. No resumo do JN, Collor foi o tempo todo sintético e enfático, enquanto Lula apareceu claudicante, inseguro e trocando palavras (cerca em vez de seca) […] Mas é impossível defender que o “Jornal Nacional buscou espelhar o debate de modo neutro e fiel: dar 1min 12s a mais para Collor foi uma maneira clara de privilegiá-lo” (p. 269-270).

QUEDA
Após o processo eleitoral, Mário Sérgio Conti nos fala sobre todo o processo de queda de Fernando Collor de Mello e como se deu, inclusive, formas de perseguição a alguns jornais brasileiros – caso da Folha de S. Paulo, que chegou a ser invadida por policiais. Paulo César Farias era o marajá a serviço do caçador deles e acabou, mesmo não participando diretamente do Governo, a se tornar a principal pessoa do mesmo, para o bem e para o mal.

O irmão, Pedro Collor, que já trazia rusgas com o presidente devido à interferência na gestão da Organização Arnon de Mello, em especial para utilizar os seus meios como instrumento político se tornou o seu principal algoz, através de uma entrevista à Revista Veja, onde denunciava todas as ações irregulares de PC Farias, em que Fernando tinha ciência. Muitos percalços se seguiram a isso, principalmente para que a entrevista não fosse desacreditada.

Denúncias e mais denúncias se avolumaram ao longo dos primeiros anos de mandato. Collor até tentava responder, mas os fatos eram maiores – apesar de a Justiça não tê-lo incriminado. A sua saída do cargo da presidência, com sua renúncia tentando evitar um impeachment - que se consolidou ainda assim, com a suspensão de seus direitos políticos por oito anos – foi o auge da queda de alguém que se achava mais forte que todos.

Notícias do Planalto: a imprensa e Fernando Collor dá muitos aspectos a se discutir: história das maiores empresas de comunicação do Brasil e de seus proprietários, relações políticas da mídia nacional, a dependência midiática dos políticos e as relações sórdidas de dentro de um governo corrupto. As mais de 700 páginas não são à toa e como valem à pena.

Referência Bibliográfica:
CONTI, Mário Sérgio. Notícias do Planalto: a imprensa e Fernando Collor. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Sistemas públicos de comunicação no mundo


Em Sistemas públicos de comunicação no mundo: Experiências de doze países e o caso brasileiro, os pesquisadores Diogo Moyses, Flávia Azevedo, Jonas Valente e Sivaldo Pereira, do Intervozes-Coletivo Brasil de Comunicação Social, trazem como estão formados doze sistemas públicos de comunicação no mundo e comparam-nos com o caso brasileiro.

Na Europa e na América Latina foi o sistema de difusão pública o que estreara a radiodifusão, garantindo assim, em sua maior parte, a legitimidade a partir da condição de monopólio do setor. No caso brasileiro, segundo o livro, o que temos é a preponderância do sistema comercial e a mídia não-comercial, inclusive, não tem a possibilidade de propagação de uma mesma emissora estatal ou pública por todo o país, processo que só começa a ser alterado a partir da criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), em 2007. Mesmo nos Estados Unidos, cuja comunicação comercial é mais destacada e com dimensões maiores que o nosso país, há órgãos de regulamentação da comunicação pública e comunitária.

Daí a importância de tal análise para o aprofundamento das discussões relativas à formatação de um complexo de comunicação realmente público por aqui, a partir da análise de outros modelos de difusão neste sistema. Inclusive, o livro cobre uma lacuna importante sobre o assunto, já que análises sobre o desenvolvimento da mídia pública de outros países praticamente não é retratada por autores brasileiros - com exceção de A melhor TV do mundo: O modelo britânico de televisão, onde Laurindo Leal Filho faz uma análise sobre a BBC, caso “clássico” de modelo público de radiodifusão com qualidade no mundo mesmo após a quebra do monopólio e a aplicação do modelo capitalista neoliberal consolidado na década de 1980.

O livro aborda inicialmente as “Concepções e abordagens conceituais sobre sistema público de comunicação”, apresentando as concepções adotadas nesta obra a partir das perspectivas de como podem ser utilizadas as mídias não comerciais e de acordo com o que pensam e praticam determinados setores comunicacionais, sejam pesquisadores ou dirigentes de meios públicos.

Do segundo ao décimo-quarto capítulos, os autores se revezam na tarefa de estabelecer um raio-x dos sistemas públicos de comunicação de doze países do mundo, através de cinco pontos de análise: I. Histórico do sistema público: fundação, desenvolvimento e consolidação; II. Estrutura do sistema; III. Modelo de gestão e formas de participação; IV. Modelo de financiamento; V. Programação; e, por fim, VI. Questões atuais em debate no país.

É através das análises sobre os sistemas de Alemanha, Austrália, Canadá, Colômbia, Espanha, Estados Unidos França, Itália, Japão, Portugal, Reino Unido, Venezuela e Brasil, perfazendo quatro continentes, que podemos verificar certas curiosidades nas diferenças entre os modelos. Um dos pontos em comum quanto ao debate consiste nos modelo de financiamento dos sistemas públicos de comunicação, onde se destaca as fontes de financiamento público, a captação externa (patrocínio, apoios culturais, publicidade,...) e a parte da receita oriunda diretamente dos governos. Inclusive, o livro mostra a preocupação na Europa, a partir do caso francês, em proibir a publicidade nas emissoras públicas devido a pressões do mercado comercial, sedento pelos recursos destinados às emissoras públicas.

Outro ponto que apresenta diferenças consiste no sistema de gestão de cada complexo e como se dá a influência dos poderes constituídos e, principalmente, da população nas emissoras. O caso da NHK, do Japão, é interesse para se observar, já que uma das condições para a entrada em seu conselho consultivo é de não participar e não ter nenhuma ligação com qualquer empreendimento comercial de radiodifusão.

Dois sistemas podem atrair o leitor devido a históricos opostos. O sistema do Reino Unido, encabeçado pelos canais da BBC, desde a década de 1930 gerido pelo Estado, com transmissões especiais para cada região que forma o reinado e com reconhecida qualidade dos programas. Enquanto isso, na Venezuela, após a não renovação da concessão da RCTV em 2006, a constituição da Televisora Venezolana Social (TVes), que apesar de ser gerida com recursos oriundos totalmente do Poder Executivo, tenta aplicar características públicas ao sistema – além dele há a TV Unisur, que é uma tentativa a partir do governo venezuelano de estabelecer uma TV dos e para os países sulamericanos.

No capítulo final, os autores analisam o panorama dos sistemas públicos de comunicação no mundo e traçam os desafios ao caso brasileiro, que apresenta uma situação diferenciada a partir da criação da EBC e, com isso, a possibilidade de uma Rede Pública de Televisão, que deve se tornar importante para que outras emissoras públicas (estaduais e municipais) possam se integrar ao processo de digitalização do meio.

A descrição dos sistemas públicos de comunicação neste livro mostra que apesar das dificuldades vivenciadas por tais modelos por todo o mundo, especialmente quando a estrutura comercial pressiona, eles continuam como elementos importantes para a discussão pública dos temas tratados no cotidiano social, tendo, principalmente, a legitimidade da população para isso.

O Brasil ainda tem um longo caminho a desenvolver, especialmente no que consta à conquista desta credibilidade perante um público que tende a ligar TV não comercial à “TV do gestor” e, principalmente, estar acostumada à forma e ao conteúdo gerado por apenas uma emissora de televisão. 

Sistemas públicos de comunicação do mundo: Experiências de doze países e o caso brasileiro é uma excelente contribuição para que possamos entender as possibilidades reais deste tipo de emissão midiática e o quanto ainda temos que caminhar em direção a um modelo bem menos selvagem e, consequentemente, mais democrático que o que possuímos.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
SISTEMAS públicos de comunicação no mundo: experiência de doze países e o caso brasileiro. São Paulo: Paulus, Intervozes, 2009. (Coleção Comunicação). 

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Mestre Graça na terra dos meninos pelados


Já li alguns livros escritos por Graciliano Ramos, já vi filmes baseados em algumas de suas principais obras, já vi um monólogo baseado num dos seus contos e vi alguns episódios de uma série cujo ponto de partido é um dos seus trabalhos. E ainda falta muito a ler do autor nascido na cidade alagoana de Quebrangulo e o nosso maior expoente das letras. Nos últimos dias, já li dois outros livros, e o que destaco hoje é o de um ramo que não estamos acostumados: o infanto-juvenil A terra dos meninos pelados.

O que se esperar de um autor que fez parte da geração regionalista do modernismo brasileiro, a partir da década de 1930, que sempre destacou e refletiu, inclusive na sua linguagem, a dureza e rispidez da região do semi-árido nordestino, num local com ainda mais dificuldades como Alagoas, quando o mesmo resolve escrever literatura infanto-juvenil? 

Com A terra dos meninos pelados, Graciliano ganhou em 1937 o prêmio de literatura infanto-juvenil do Ministéio da Comunicação.

Este livro representa uma viagem através da imaginação muito fértil de Raimundo Pelado, "um menino diferente dos outros meninos: tinha o olho direito preto, o esquerdo azul e a cabeça pelada".

Como os vizinhos mangavam dele, ficava a desenhar nas ruas e calçadas coisas do país de Tatipirun, onde todos são crianças que não têm cabelos e têm um olho azul e outro preto, fora as características geográficas inigualáveis. 

Num dia, após escutar as zombarias tradicionais, ele foi atraído por algo. Atravessou a rua, foi para trás da casa e descobriu ainda mais: um monte que baixava e se aplanava para que pudesse andar sem esforço, uma laranjeira que saía do caminho e falava, um carro com um olho preto e outro azul, o Rio das Sete Cabeças que se junta para atravessá-lo num pulo só,...

Raimundo conhece crianças que não crescem, num lugar que o Sol nunca descansa e ninguém fica doente. Todas elas têm as cabeças peladas e um olho preto e o outro azul, assim como ele. Mas cada um apresentava outras características físicas que os diferenciava, como o anãozinho e o ruivo, que queria pintar pintinhas em todo mundo.

Além deles, o destaque é a "vossa princesência", a princesa Caralâmpia, que aparace e desaparece e nunca foi coroada princesa porque não há reinado, nem principado. Raimundo acha estranho ela ainda com bichos no corpo: um broche de vagalume no peito e pulseiras de cobras de coral nos braços. Tudo diferente do seu mundo, onde a maioria dos bichos, especialmente as cobras, é perigoso.

Ele escutou histórias, quer dizer, até onde podiam contar a história do menino que virara mosquito... Viu a importância das diferenças e do tratamento de pessoas que respeitam isso, mas ele tinha que voltar. Havia uma lição de geografia a fazer e, quem sabe, depois não voltaria com o seu gato medroso e ainda sem nome. Eles iriam gostar dele.

Em A terra dos meninos pelados, Graciliano exacerba em criatividade para mostrar de maneira exagerada que as diferenças precisam existir e ser respeitadas. "Mestre Graça" deixa sua contribuição em mais um setor literário. Pode ser até estranho, quando comparado a outras obras, mas criatividade não lhe falta para criar Raimundo e recriar um mundo de meninos carecas, com um olho azul e outro preto com várias características geográficas que mais facilitam do que atrapalham a vida. Um país com o curioso nome de Tatipirun.


Referência Bibliográfica:
RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. 40. ed. São Paulo: Record, 2010.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Por trás dos muros: Um olhar diferenciado sobre a loucura

Um famoso dito popular diz que "de médico e louco todo mundo tem um pouco", uma forma de colocar em termos opostos situações que recebem prestígio social de maneira oposta. Quando soube que Acássia Deliê estava escrevendo um TCC sobre o assunto, admirei, antes de qualquer coisa, a coragem em abordar tal tema, especialmente por imaginar que a perspectiva de análise iria transpor as barreiras da cientificidade acadêmica e teria um olhar singular sobre as pessoas que vivem num hospital psiquiátrico, o único público no Estado, o Hospital Portugal Ramalho.

As conquistas do Expocom em 2009, principal prêmio de estudantes de graduação em Comunicação do país, mostram que a qualidade do seu texto, já demonstrada em conquistas anteriores, e sua forma de escrever, com a preocupação no social tão esquecido na prática da comunicação, estiveram em voga em Por Trás dos Muros. Com todo o merecimento, veio a notícia de que o livro-reportagem de conclusão de curso seria publicado em livro por uma editora do Rio de Janeiro, sob o selo Em Pauta.

Tenho parentes que tem ou tiveram problemas psiquiátricos sérios e, pelo pouco que me conheço, acho até que não fugirei à linha genealógica. Apesar de ter lido alguns trechos da obra através do blog da autora, a leitura deste livro poderia ser mais difícil que os demais. Além disso, o processo de elaboração do meu trabalho de conclusão de curso, com a necessidade de dedicação às obras específicas do meu trabalho, acabou fazendo com que o lesse meses após do seu lançamento.

A história de médicos e pacientes através da peça "Atalhos" tem toques de drama, comédia e a tragédia de acontecimentos específicos que acabam por nos apresentar ao mundo da depressão e da loucura. Manoel, Sandra Virgínia, Cristine Mayara e Paulinho. Pacientes com nomes fictícios - obrigação do Conselho de Ética da Ufal - que trazem cada qual uma história, algumas semelhantes a de muitas pessoas que não vivem atrás de muros. Cada qual com sua função na peça apresentada em 2008, na qual não era possível distinguir pacientes e profissionais de saúde.

Como não rir com a história de vida do "malcriado" Manoel, que atende o telefone do Hospital Portugal Ramalho e, desculpem o spoiler, dizer que não era "doido" para se jogar de uma ponte, apesar de cortes frequentes no corpo?

Como não se chocar com alguém que foi obrigada a casar com um homem por conta da vontade dele, o que demonstra as relações coronelísticas existentes em muitas partes de Alagoas?

Como não ficar impressionado com a situação efêmera de um homem que fora profissional do mesmo hospital que estava internado?

Acássia consegue transmitir as informações e os discursos necessários para um produto jornalístico com a qualidade literária e, principalmente, a sensibilidade de tratar como seres humanos que são os homens e mulheres que estão ou passaram pelo Hospital. Além de tratar os profissionais de saúde sob o mesmo método de constituição das demais histórias.

Num trecho sobre uma dessas profissionais, diretamente ligada ao núcleo teatral do HEPR e que criou novos conceitos a partir do convívio com as pessoas de lá, a autora afirma: "Mais do que o amor pelo teatro, Hortência tem respeito pelos atores. E é em nome desse respeito que se sente obrigada a tentar diminuir a distância entre a sociedade e a figura do louco, assim como num dia em 1988, aquela paciente cantante havia feito com ela".

Em Por Trás dos Muros, Acássia Deliê se junta a Everaldo Moreira, Hortência, Marcondes Costa, Nise da Silveira e tant@s outras e outros que tentam enxergar a pessoa com o transtorno psiquiátrico e não a loucura por si só, que tanto afasta por talvez nos aproximar de  sensações que todos nós temos e tememos.

Referência Bibliográfica:

DELIÊ, Acássia. Por Trás dos Muros. Rio de Janeiro: Multifoco,  2010. (em pauta reportagem).

domingo, 2 de janeiro de 2011

Momento, apesar dos pesares, histórico

Ontem tivemos a passagem da faixa presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva para Dilma Vana Rousseff. Desde 1926 não acontecia no processo político a passagem do principal cargo político do país para uma terceira pessoa diferente eleita por meio de votação.

Apesar de ter várias divergências com o que foi o Governo Lula e de continuar a tê-las no novo governo petista,  não há como deixar de dizer que foi um momento histórico. Quem imaginaria que numa sociedade tão preconceituosa como a brasileira, tão ligada ao conservadorismo, veríamos um ex-líder sindical entregar a faixa presidencial a uma mulher com perfil duro e que participara da luta armada?

Não são poucos os que ouvi durante o processo eleitoral e os que ainda ouço a criticar Dilma Rousseff, por motivos que estão longe de ser ideológicos. A vitória de José Serra nos dois turnos em Alagoas parece-me estar muito menos ligado à situação deprimente do Estado, detentor dos piores índices sociais do país, que da ligação histórica no imaginário popular com o que disserem os setores da elite econômica.

Por mais que estejamos ligados às classes desfavorecidas, por mais que muitos de nós estejamos neste setor - mais da metade da população se encontra em pobreza absoluta -, a mentalidade de temer alterações, por menores que sejam, povoam nossas mentes e tudo vira desculpa para esconder que aqui uma elite, pequena, acostumada a não ter tanta formação intelectual, prefere fugir ao debate político-ideológico e partir para conceitos pré-concebidos.

O fato de Dilma ser mulher afastou de si o voto de pessoas que gostam muito de Lula. Além disso, o seu perfil de mulher solteira aos 63 anos, que aparentemente gosta de tomar as rédeas do comando - numa sociedade com mentalidade patricarcal - pesa bastante. Afinal, como explicar que num lugar que teríamos tantas pessoas auxiliadas pelo Bolsa Família - principal argumento de muitos para a vitória petista no Nordeste - termos dupla derrota da candidata ligada ao Governo?

Imagina só discutir aqui elementos políticos que nos façam discordar do que foi o Governo Lula baseado no que boa parte da esquerda, efetiva, achava que ele poderia fazer? Bem difícil. Bastaria dizer que na gestão dele houve avanços, sim, mas que como ocorreu no período pós-guerra, se deu muito a quem tinha muito e pouco a quem tinha pouco, tentando satisfazer a todos. Quer dizer, estranhamente, setores empresariais não ficaram satisfeitos com os maiores lucros dos bancos na história; obras para empreiteiras se satisfazerem; empréstimos do BNDES e afins...

O discurso de Dilma sobre o "governar para todos" fica até legal para um governo eleito segundo o poder democrático vigente no Brasil - o de entrega da ação para alguém que irá te "representar", acredite... Porém, mostra o que teve que ser feito para que um Partido dos Trabalhadores assumisse o poder. Coalizão com partidos com os quais não se tinha ligação nenhuma e com setores de todos os tipos.

Basta ver José Sarney ainda lá, o mesmo que um dia fora muito criticado por Lula e Collor, aliás, este último também apoiou o Governo e pediu votos para Dilma; o PMDB sempre sedento de poder e, na minha opinião, o maior obstáculo de Dilma para este mandato; o simbolismo de ver Hillary Clinton ser seguida de Hugo Chávez para parabenizar a recém-empossada presidenta, mostrando a política de se dar bem com todo mundo...

No campo da comunicação, a presença de apenas um proprietário de meios de comunicação em meio a chefes de estado (?!) mostra que só muda a base televisiva de apoio, que continua a ser a da Record e não, historicamente, a ser global. Franklin Martins deixou uma proposta de regulação tímida, e ainda assim muito criticada pela grande mídia, mas que ninguém sabe como ficará, com a mudança do Ministério das Comunicações para o Paulo Bernando, cuja missão é mudar os Correios. Se a tendência é esperar continuidade, não mudará muita coisa, se é que vai mudar alguma. 

Dilma terá o conforto que Lula não teve no Congresso, porém, terá um sisudo Michel Temer como vice  no lugar do empresário um pouco menos simpático que o presidente, José Alencar. As discussões sobre as presidências da Câmara e do Senado já deram o sinal de que o PMDB não tem interesse em ver a manutenção do PT na presidência nos próximos anos e vários movimentos vêm sendo jogados pelos corredores políticos do país. Fora que, por mais que tente, não tem como ter a lábia do agora ex-presidente, em seu tratar com a população através de metáforas com assuntos que eles conhecem, quebrando protocolos,...

A presidenta não só terá sombra do presidente que saiu do cargo mais bem avaliado em pesquisas, pronto para voltar em 2014 se for necessário, como um jogo político ao qual ela, de perfil mais técnico, pouco conhece. No Brasil, sempre há cobras esperando para dar o bote, resta saber se Dilma terá mais sorte que Lula teve com seus principais cães de guarda.