quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A condição pós-moderna segundo Lyotard


O francês Jean-François Lyotard trata em A condição pós-moderna (1979), principalmente, da nova maneira de se entender o saber, produção científica, no avanço da sociedade capitalista no mundo, sob a nova forma do neoliberalismo e da pós-modernidade. O autor utiliza-se das mais variadas fontes, especialmente as contemporâneas, para discutir a questão da produção do saber na contemporaneidade.
Para Lyotard, a pós-modernidade, que faz o saber mudar de estatuto, “designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX” (2000, p. xv).
Se Karl Marx e Friedrich Engels já disseram na Ideologia Alemã que a concorrência universal “destruiu em geral a naturalidade, tanto quanto isto é possível no interior do trabalho, e dissolveu todas as relações naturais em relações monetárias” (1986, p. 94), não seria diferente na forma de estudar e pesquisar nas instituições de ensino superior, cada vez mais dependentes dos financiamentos privados: “O saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e será consumido para ser valorizado numa nova produção: nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo seu próprio fim; perde o seu ‘valor de uso’” (2000, p. 05).
Assim, o homem se vê mais uma vez alienado em relação ao que produz. O cientista passa a ser mais um a ajudar o capital a obter maior lucro, afinal de contas, como diz Lyotard, o saber será elemento fundamental na competição mundial pelo poder, numa espécie de “guerra intelectual” como a que ocorreu entre EUA e União Soviética durante a Guerra Fria.
Neste novo contexto a diferença consiste na perda de força dos governos nacionais perante o mercado financeiro. Com a desregulamentação propiciada pelo neoliberalismo, muda-se a classe que decidirá as ações: “A classe dirigente é e será a dos decisores. Ela já não é mais constituída pela classe política tradicional, mas por uma camada formada por dirigentes de empresas, altos funcionários, dirigentes de grandes órgãos profissionais, sindicais, políticos, confessionais” (2000, p. 27).
O que traz outros problemas para a produção científica. Primeiro, como definir o que é ou não saber e, principalmente, quem poderá definir isso? Enfim, qual o discurso que deve ser utilizado pela ciência para que se faça entender e, desta forma, demonstrar a quem investe nela que os resultados estão sendo obtidos em curto período, no caso de patrocínios de grupos empresariais, e, em médio a longo prazo, nos casos das universidades?
A legitimação virou um grande problema, pois não é considerada como uma fraqueza do jogo científico:
A ‘crise’ do saber científico, cujos sinais se multiplicam desde o fim do século XIX, não provém de uma proliferação fortuita das ciências, que seria ela mesma o efeito do progresso das técnicas e da expansão do capitalismo. Ela procede da erosão interna do princípio de legitimação do saber. Esta erosão opera no jogo especulativo, e é ela que, ao afrouxar a trama enciclopédica na qual cada ciência devia encontrar seu lugar, deixa-as se emanciparem (2000, p. 73).
Como colocado anteriormente, a pressão por resultados das pesquisas aumentou consideravelmente. Assim, é necessária que a explicação dos resultados seja a mais simples possível quanto à linguagem utilizada. Lyotard aponta isso como outro problema da ciência que se vê obrigada a recorrer a outro saber para que seja comprovada enquanto tal “cai assim no que ele condena, a petição de princípio, o preconceito” (2000, p. 53).
Como solução, oriunda do processo para legitimar politicamente a classe burguesa, aparece a narração, não mais como um lapso de legitimação, mas como um apelo ao relato na problemática do saber. Entretanto, o grande relato (de especulação ou de emancipação, perdeu sua credibilidade, o que pode justificar até mesmo a crise nos ideais de transformação social:
Não deve causar espanto que os representantes da nova legitimação pelo ‘povo’ sejam também os destruidores ativos dos saberes tradicionais dos povos, percebidos de agora em diante como minorias ou como separatismos potenciais cujo destino não pode ser senão obscurantista (2000, p. 55).
Além disso, a pesquisa científica adquiriu a forma de produção em série, com a necessidade de resultados que fazem com que as investigações sejam rasas, cujos pontos falhos podem ser descobertos com maior aprofundamento sobre as questões. As tarefas de pesquisa se fragmentaram a ponto de ninguém dominá-las, como ocorre no processo do operário uma fábrica, que trabalha numa pequena parte da produção sem saber como se dá todo o processo.
Como uma nova indústria, a linguagem científica acaba por ser melhor assimilada por quem tem condições de aplicar maior quantidade de dinheiro em todas as etapas de produção e, com as novas tecnologias, na divulgação dos seus resultados. Os cientistas passam a brigar entre si por mais investimento, em vez de discutir o que pode ser feito de melhor na sua área. É assim que, segundo Lyotard (2000, p.83),
O Estado e/ou a empresa abandona o relato de legitimação idealista ou humanista para justificar a nova disputa: no discurso dos financiadores de hoje, a única disputa confiável é o poder. Não se compram cientistas, técnicos e aparelhos para saber a verdade, mas para aumentar o poder.
[...]
Este não é somente o bom desempenho, mas também a boa verificação e o bom veredicto. O poder legitima a ciência e o direito por sua eficiência, e esta por aqueles. Ele se autolegitima como parece fazê-lo um sistema regulado sobre a otimização de suas performances. [...] Assim, o crescimento do poder e sua autolegitimação passa atualmente pela produção, a memorização, a acessibilidade e a operacionalidade das informações (pp. 83-84)”.
Desde o início desta nova sociedade, com a revolução industrial, percebe-se que riqueza e ciência estabelecem uma relação intrínseca, com o crescimento de uma dependendo do desenvolvimento da outra. Até que chegamos ao estágio social atual, onde “é permitido representar o mundo do saber pós-moderno como regido por um jogo de informação completa, no sentido de que os dados são em princípio acessíveis a todos os experts: não existe segredo científico” (2000, p. 94).
É justamente desta última premissa apontada pelo autor francês que mora um dos problemas para novas pesquisas e mudanças em “descobertas” científicas. Quanto mais pré-estabelecido for o “lance”, com grande consenso, mais difícil será mudá-lo, por mais provas que se tenha. Afinal, a ciência pós-moderna muda o sentido da palavra saber, voltada agora à produção do desconhecido, com uma legitimação voltada ao falso raciocínio (paralogia), definível pelo sistema sócio-econômico. Segundo Jean-Fraçois Lyotard (2000, pp. 17-18):
Não existe nenhuma razão de se pensar que se possa determinar metaprescrições comuns a todos esses jogos de linguagem e que um consenso revisável, como aquele que reina por um momento na comunidade científica, possa abaixar o conjunto das metaprescrições que regulem o conjunto dos enunciados que circulam na coletividade. É ao abandono desta crença que hoje se relaciona o declínio dos relatos de legitimação, sejam eles tradicionais ou ‘modernos’ (emancipação da humanidade, devir da Ideia). É igualmente a perda desta crença que a ideologia do ‘sistema’ vem simultaneamente suprir por sua pretensão totalizante e exprimir pelo cinismo de sue critério de desempenho (pp. 117-118).
Mesmo escrito no início do processo de informatização, Lyotard estabelece dois rumos para a exigência dessas novas máquinas, capazes de juntar todos os dados das pesquisas desenvolvidas – o que faz todos serem experts. Do mesmo jeito que poderia ser uma fonte infinita de dados e, consequentemente, poder gerar discussões em qualquer parte do mundo, “ela pode tornar-se o instrumento ‘sonhado’ de controle e de regulamentação do sistema do mercado, abrangendo até o próprio saber e exclusivamente regido pelo princípio de desempenho. Ela comporta então inevitavelmente o terror” (p. 120).
O que se vê hoje, mais de trinta anos após o que foi escrito, são as várias tentativas, inclusive o Brasil, de cercear o acesso e a divulgação através de uma imensa rede de dados, transfigurada no que conhecemos hoje como Internet. Todos os pontos do mercado podem ser controlados de um mesmo local da mesma forma da produção científica, com seus inúmeros métodos de ranqueamento de desempenho.
Silvano Santiago, no posfácio escrito em 1990, chega à seguinte conclusão:
Pode concluir Lyotard que, nos últimos decênios, o saber tornou-se a principal força de produção. Tanto a busca do saber (pesquisa) quanto a transmissão do saber (pedagogia) fundam a circulação do capital na sociedade pós-moderna. O saber não está desvinculado da questão maior do poder econômico e político, em suma, ele é a moeda que define na cena internacional os jogos de hegemonia (entre as nações, entre as empresas multinacionais) (2000, p. 129).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa; posfácio: Silviano Santiago – 6. ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. Título original: La condition postmoderne. (1979)).
ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1986. Título original: Die deutsche Ideologie: Kritik der neuesten deutschen Philosophie in ihren Repräsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner, und des deutschen Sozialismus in seinem reuschieden Propheten.

10 comentários:

  1. Gostei do seu texto. Claro, objetivo e sintético. Estou a dias procurando algo sobre Lyotard e até agora o seu texto foi o que mais gostei! Para minha surpresa você mora na cidade onde eu morava. Tirando de lado os apontamentos filosóficos que eu acabei de ler no seu blog, mas esse é tipo de coisa que só a internet proporciona. O layout do blog também tá ótimo!

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  2. Tudo Bem? interessante este espaço parece muito estruturado.........bom trabalho :)
    Gostei muito faz mais posts deste modo !

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  3. Olá, Anderson. Tudo bom? Sou professor do MBA de Educação Corporativa na Universidade Veiga de Almeida e gostei bastante do seu texto. Encontrei ao buscar um material sintético sobre o assunto que pudesse indicar como leitura para os alunos. Obrigado. Abraços Vinícius Antunes

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  4. Muito obrigado pelo elogio, Vinícius. Fico feliz que este material seja utilizado para fins educativos.

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  5. Gostei do post, Anderson. Uma resenha realmente bem feita. Estou aqui na labuta com o Lyotard também. Abraços

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  6. Gostaria de saber onde posso encontrar o livro completo "A condição Pós-moderna".

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